terça-feira, 13 de agosto de 2019


Woman was God’s second mistake. 

Nietzsche



1.


E, Deus, é fiel?

Cuspo sangue entre uma palavra e outra, eles não se importam, querem a verdade. E eu torno a repetir: entre nós, apenas uma história de amor ao contrário.
Ao contrário. Como toda história a dois deveria ser: começar quando estivesse a ponto de terminar, crescer na fase minguante e, com energia própria, ser o próprio movimento, amor-continuum.
Sonhadora ungida fora de tempo? Não sei. Mas a exemplo do mito do bom selvagem, ninguém aqui pode dizer que ela é apenas e simplesmente uma terrorista, ou, ao contrário, uma má terrorista: no dia 11 de setembro também ela deixou cair, de cada olho, uma lágrima para cada torre.
Terrorista bom é terrorista morto? Pare com isso. São necessários laivos e linhas para outro retrato falado de mulher. Uma que só, de tempos em tempos, Deus se lembra de fazer e, por isso mesmo, nos faz acreditar também que Ele existe.
Tudo ao contrário, então, começou naquela noite. Pátio da Faculdade de Filosofia. Chovia, as salas de aulas espirravam alunos e ouvintes. Uma ou outra gia pulava aqui e ali entre as madressilvas, as flores pretas dos guarda-chuvas, ócio do olho.
De pé, mãos nos bolsos, por instantes parado, esperava a chuva passar. Ou não esperava nada. Mais um dia, outra noite gasta, pensei. Tinha assinado a lista de presença para uma amiga que se encontrava no Xingu. Eu não esperava que voltasse, nem mesmo como amiga. Nome? Não tem importância para a história.
Acendi um cigarro, soltei a fumaça. “Não lembro”. Olhar distante, comissuras caídas da boca, eu acho. “Obrigado, parei. Não fumo mais. Posso ficar com um nas mãos? Me ajuda a falar. Não, claro, não com as mãos”. Ao contrário, então, do que eu esperava, ela deitou a mão no meu braço.
Que tal um café?
Por que não? – perguntei eu.
Não aqui na cantina. No Café Paris?
Poderia ser melhor?
Daqui a meia hora?
Meu olhar foi seguindo uma piteira. “O que deu nessa mulher?”, pensei. Sempre tão distante que mais parecia detestar todos os homens, eu, em especial e, ao contrário, amar todas as mulheres. Peguei o carro e fui ver qual era. Um Ford, preto. A chapa, não lembro, não lembro.
Você gosta de poesia?
Gosto – disse eu.
Maiakovski? Sylvia Plath? T. S. Eliot?
T. S. Eliot.
E de Rimbaud?
Assim, assim.
Je vis que tous les êtres ont une fatalité de bonheur – disse ela, me instigando.
– “Percebi que toda a gente tem o fatalismo da felicidade” – traduzi.
L’action n’est pas la vie, mais une façon de gâcher quelque force.
– “A ação não é vida, mas uma forma de estragar a força” – continuei.
Houve uma pausa. E aí a conversa passou para outra coisa. Depois do café, pedimos vinho do Porto. Um Adriano, 1997. O lugar estava cheio àquela hora. Dissonante, a gente tinha que projetar a cabeça para falar e ouvir o que o outro tinha a dizer. Cedo para ler lábios? Pode ser.
Como era? Recebia muitos homens, segundo o porteiro. Gostava de mulheres, segundo os amigos. Era calma, era nervosa. Era gentil, cruel. Gostava de crianças, não gostava. Era liberal, comunista. Vestia-se bem, usava jeans. Gostava do Mick Jagger, ouvia jazz. Sempre com pressa, nunca. Não tinha família, pais caretas. Extrovertida, tímida. Estudante, formada. Trabalhava, não trabalhava. Era linda, linda.
Linda é apelido, disse eu. Nome? Nome de verdade? Conhecia como Lys, era assim na Faculdade de Filosofia. Não sei. Teresa Lys F? Pode ser. Como eu disse, não sei.
Retrato falado? Seus olhos pareciam contar uma história. Tinham o código de luz, o Morse dos cílios. Eram verdes, profundos, bolinhas de gude. Por isso também que, depois do café, a coisa continuou. Encontro casual? Que fosse. Não dava para sair fora, meus olhos nessa teia de luz.
Posso falar uma coisa?
Pode falar duas, se quiser.
Tem semana que estou te filmando.
Filmando?
Observando.
Ah, um tímido?
Também, mas não era só isso.
E o que era?
Pensei que fosse do tipo de mulher que gosta de outras mulheres. Por isso nunca cheguei e falei com você.
Você pensou certo.
O quê?
Sou do tipo de mulher que gosta de outras mulheres.
Algo errado? – perguntou ela, provocativa.
Hã-hã – respondi, tentando disfarçar minha contrariedade.
Pensei que tivesse.
Aham. Bem... Na verdade, agora foi você quem pensou certo.
Mas isso não me impede de gostar de homens.
?
Até ajuda.
Então, não estou sobrando? – perguntei.
Ainda não – disse ela, sorrindo só com os lábios.

Retrato. Nariz fino, levemente arrebitado. Às vezes, seu traçado lembrava as linhas de Niemeyer, de Brasília. Arquiteta? Não. Artista plástica. Performática, escultora também. O curso de antropologia era porque Lys gostava, queria saber mais sobre os terenas e outras tribos indígenas do Alto Xingu, penso, ou talvez fizesse parte do próximo trabalho. Como proposta estética, quero dizer. De todos os ângulos, Lys era bonita. Lys, apenas Lys.
Voltando: bar apinhado, gente saindo pelo ladrão. Em cada mesa, certa volúpia e gestos comprometidos, luas de sorrisos. As conversas fluíam, antecedendo as águas. Todos mostravam seu melhor lado.

Por que não? – perguntou Lys, a fase de conquista, talvez a melhor. Nesse estágio ainda ninguém sofreu, a pele é lisa e não se sentiu seu verdadeiro cheiro.
Aliás, Ulisses, tenho uma visão bem minority, digamos assim, sobre isso. Quero dizer que o amor, como uma cebola, tem várias fases ou camadas. E não sei se são as pessoas ou o próprio amor que vai ficando menor, quanto mais íntimo, perto do centro, do coração mesmo.

Emocionada, enquanto falava, seus cabelos, finos rios castanhos, fluíam na luz. Transtornados apenas, se ela jogasse a cabeça de lado. Como se quisesse me ver ou ser vista por outro ângulo.

Talvez não seja novidade para você, disse ela, que o amor torna as pessoas pequenas, o que elas são na verdade, camada a camada.
Talvez o contrário seja possível, disse eu, do centro para a periferia, no caso da cebola, do coração para fora, no caso de gente.
Continue, disse ela.
Será que, nesse sentido, de dentro para fora, o amor não deixa as pessoas, em si, maiores? – ponderei.
Continue.
Apenas isso: não é mais fácil pensar assim?
Exatamente, replicou ela, mais fácil. E também mais fácil errar. Pois se é como você diz, que o amor vai ficando maior, por que, depois de algum tempo, para todos, o amor acaba?
Pode não ser o amor, disse eu. As pessoas é que ficam maiores.
Inchadas, você quer dizer.

Paciência, senhores. Cito esta passagem, porque a metáfora da cebola é um tema recorrente na vida e na obra de Lys F, que talvez ajude a traçar seu perfil de mulher, artista e revolucionária.
Retrato: a boca, gomos de laranja. Linhas, comissuras, curvas de promessas e tudo nascia ali. Seu hálito perfumava as palavras mais vãs e prosaicas. Era uma mulher livre, sem discursos prontos. Tocava sem partitura. Qualquer assunto, para nós, tinha interesse, como se quiséssemos pertencer logo um ao outro, conjuntos vazios. Nós, em círculos, nossos copos desenhando outros círculos sobre o tampo de vidro da mesa, nossos lábios se tocando: a teoria dos conjuntos, sim, na prática.
Houve um beijo, rápido. Ela, a liga. Para nós mesmos, naquele momento e para juntar um par de histórias tão díspares. Possível em uma única noite?

Até os nove anos, eu sentia apenas culpa. Culpa e sonhos que não eram meus, disse Lys F.
Culpa?
Desculpe. Não estou preparada para falar sobre isso ainda. Eu acho.
Diga: e os sonhos, de que são feitos?
Vou contar: eu fazia balé, minha mãe que queria. Ela me achava linda naquela roupinha. Eu, não. É normal, eu ainda garotinha, me sentir ridícula? Para mim, sapatilhas rosa eram sapatinhos chineses de tortura. Para conter os dedos. Como é que eu podia aguentar anos e anos de treino para executar movimentos sem graça? Que músculos teria de embrutecer para me tornar mais perfeita, mais feminina? Que sonhos eu teria de sacrificar para fazer um pas de deux? Outro sonho que eu tinha, que não era meu, e que a mãe alimentava dia a dia: a volta do pai. Eu me olhava no espelho e via o sonho de mãe. E, não sendo meu, demorava a passar. Até que, um dia, consegui gritar e acordei para o meu sonho. Viver a minha realidade. Mas essa é outra história.
Você devia admirar muito a mãe para sonhar os sonhos dela? E suportar tanto tempo – disse eu.
Foi o modo de descobrir o que sentia a mãe e as outras mulheres por extensão. E, claro, a forma de me descobrir no mundo dos homens. O mais importante disso tudo: daquele dia em diante, decidi que eu teria meus próprios sonhos. O que nos outros é uma coisa natural, em mim, seria uma conquista diária. Nunca mais fecharia os olhos para mim mesma. No entanto, naquela época, eu mal poderia suspeitar que a culpa fosse outro sangue. Tanto sangue, Ulisses, correndo em veias invisíveis. Não foi fácil, a impressão que eu tinha era que estava para nascer e não conseguia. Não conseguia nascer de novo, não bastava gritar. Havia outro cordão umbilical que me ligava e nutria e, ao mesmo tempo, envenenava – disse ela.
É, acho que tenho mesmo Complexo de Clarice.
Que complexo? Ler e também se apaixonar pela escritora?
Não apenas, mais. Ter me sentido como ela, disse Lys, e mais quando garota.
Ainda não vi aonde quer chegar – disse eu.
Como escritor, disse ela, talvez não seja estranho para você alguns dados biográficos de Clarice. Que nasceu na Ucrânia. Que sua mãe já estava doente, mas que, como era a crença na época, acreditava que ficaria curada ao dar à luz. Que, como deve saber, isso não aconteceu, prostrando a mãe na cama durante nove anos. Que originou, na garota, um sentimento de culpa, porque sentia que falhara na missão de ser sua cura.
O que isso, afinal, tem a ver com você?
Essa seria a pergunta que poderia ter feito nesse momento, mas eu não fiz.
Também penso que matei a mãe. A minha mãe, Ulisses.
E por que pensa isso? – perguntei. Você também nasceu na Ucrânia?
Minha observação em tom de blague fez efeito e Lys disparou um riso curto, logo voltando à sua tardia autocomiseração.
Não, não nasci em seios de neve, disse ela, mas é como se tivesse sido um erro de mulher. Erro de mulher, Ulisses. Muito tempo foi isso o que eu pensei. Bebê ainda, com certa disfunção, precisava estar sempre mamando e sempre num seio só. Aquele, o esquerdo, onde batia o coração, até hoje parece, dentro da minha boca. Não adiantava a mãe me virar, que eu rejeitava o outro seio. Pois bem, ao cabo de três anos, adivinha onde a mãe teve câncer? Claro: no seio. Esquerdo. Depois de extraído, ficou um asterisco no lugar, unindo a pele numa grande e malfeita estrela. Um asterisco que era quase ou nada mais que uma nota no rodapé da minha história. Tirei tudo da mãe, pensava, sem saber que minha culpa poderia ficar ainda maior. Cristalizada como leite. Transformado ele também em câncer, tempos depois: a mãe ganhava outro corte e asterisco. Extraíram os seios, meu Deus, mas não a minha culpa. Ela, à noite, era o que faltava. E não adiantou a quimioterapia. A mãe perdeu os cabelos, o câncer desceu então para o fígado. Em poucos dias, aconteceu o inefável: o corpo da minha fé, também cremado, virou cinzas. Parei de falar com Deus.

Nesse momento, uma lágrima cortou seu rosto, tentando corromper sua convicção. Mas ela caiu sem chamar atenção, como se não existisse, ou fosse uma lágrima invisível ou, pior, insignificante, que não valia a pena incomodar os dedos. Pude sentir então que Lys era uma mulher rara e forte.
Contou que, nos últimos dias, não arredou o pé da cama da mãe. Nutria a ideia grega de que poderia regenerar seu fígado. Fixa e acorrentada. Entretanto, aprendeu mais. Para ela, deixou de existir a alma como então se concebia.

É a mente e não a alma que foge do corpo, fétida como fogo-fátuo, quando este está para morrer. A mente, sentenciou Lys, não suporta a ideia de fracasso. Por isso, ela sai e muda de roupa e de identidade: toma corpo no que é inefável e voa, eterna. Isso o que ela intuiu nos últimos segundos de vida da mãe. O coração ainda batia e a mente já abandonava o corpo, Ulisses.

Retrato falado de um pai invisível? Pelo menos, entre seus doze meses de idade, quando ele saiu de casa abandonando mulher e filha, e seus dezoito anos incompletos, quando ele reapareceu. Para logo ela desejar que ele voltasse a ficar invisível. Quando? No dia do velório da mãe. Justo nesse dia.
Invisível para sua mãe, enquanto viva, que teve de lutar sozinha para criar e educar a filha. Invisível para ela: o pai não estava ali, na extensão da sua mão. Não estava quando ela precisou para se manter sobre a bicicleta, ou para ter equilíbrio em outras fases da vida. Não estava quando ela jogou o dente-de-leite para trás e fez seu pedido. Ou quando contava e recontava as estrelas e sempre faltava uma. Não estava também quando ela quebrou a perna e gritou de dor. Mas por que o pai estaria lá, se apenas eram dores primárias? Primárias. Não estava naquela noite, quando ela acordou de um sonho com o próprio grito. E que tipo de dor era essa para uma menina, se não havia cortado a pele?
Se foi um pai invisível até seus dezoito anos, aconteceu também de ela, por seu lado, querer ser invisível para ele por todo aquele tempo. De ser invisível, à sua maneira. De nunca pronunciar seu nome para não atrair a atenção de seus olhos onde quer que estivessem, nem de seu espírito, porque até ele deveria ter um, por onde andasse. Nunca se permitir olhar a foto sépia do pai, que existia numa pequena moldura no jazigo de uma gaveta. Nunca aceitar o que viesse da parte dele. E sempre desconfiar dos homens e dos seus atos.
Lys me relatou, naquela noite que, ao olhar para o pai invisível, porque ausente, conseguia ver melhor a situação da mulher. Esse foi o grande mérito de não ter tido pai, disse ela. De todo modo, ele volta para casa e participa do velório. Confessa que nada ganhou naquele dia, ao contrário, perdeu: a pouca tranquilidade e a autoconfiança que restara. De tão pálida, Lys chegou mesmo a desmaiar sobre os arranjos e guirlandas. E, ainda, sem sentir, ser abraçada pela primeira vez e sem jeito pelo pai invisível, também agora invisível para seus olhos de dentro, embora estando ausente e que ali se colocara a seu lado.
Disse Lys que nunca deveria ter perdido os sentidos para ser abraçada e dever esse favor ao canalha. Canalha. Foi assim mesmo que ela se expressou naquele momento de ira, ao se referir ao pai. Ele, para sempre, deveria ficar invisível. A raiva passou com o tempo, porém. Naquele dia e nos seguintes, chorou o que tinha de chorar.

Até ficar desidratada, disse Lys.

Nas demais semanas, apenas lágrimas burocráticas de algum momento. Um mês depois, pai e filha marcaram um encontro. Setembro, quarta-feira. Tinha a função de ser o maior evento emocional para os dois. Ele, aproveitar a segunda chance que a filha oferecia, para deixar de ser invisível. Lys também não perderia o momento para voltar a acreditar mais nos homens e no pai, em especial.
Havia, então, a boa vontade, de ambos os lados. E, claro, o inferno. Lugar, ao mesmo tempo, da maior profundeza que os dois, pai e filha, se lançaram para atingir maior altura. O primeiro encontro, rápido, teve lugar no Ráscal, restaurante da moda, de escolha quase fortuita, mas o cardápio dos temas foi ameno e variado. Os assuntos curtos, os sorrisos úteis, o sentimento aos pedaços.
O pai, advogado fodão, usava terno Armani e gravata de seda. Sóbrio demais para o instante, porém, mais apropriado para a reunião que teria em seguida, depois de trocar palavras e olhares com a filha. O almoço teve a duração de um fast-food, embora servisse apenas para apresentar melhor os dois e, por que não, alimentar sonhos de ambas as partes.

O segundo encontro aconteceu duas semanas depois, na casa de Lys. Quinta-feira, às 21h10. O pai, agora num casual chique, levou flores numa das mãos e uma garrafa de vinho na outra, Dão, tinto, 1992. Ela vestia um modelo velvet preto, cavado na frente com certa ousadia, mas sem ferir o decoro da ocasião, generoso nas costas, mostrava boa parte do outro tecido branco, de seda, sua pele perfeita. O vestido insinuava mais do que pretendia revelar. Apenas uma garota desejando se mostrar moderna e ser aceita pelo pai. Um corpo magro e perfeito para os padrões da época ali estava, junto com a promessa. Que continuava onde o vestido preto terminava e, pelos joelhos bem torneados e trilhos das pernas, também se afinava nos sapatos pretos de salto alto. E aí, ainda assim, onde o corpo terminava, a promessa se estendia.
Fez cabelo, maquiagem básica, lapisou as sobrancelhas, lábios cor de avelã. Apertou um par de brincos e um colar de certa gema. Meia hora de espelho, sua outra face, ao inverso. Estava preparada para o pai. Ainda tão invisível como quando afasta o rosto e, de viés, constata a falta de memória.
Duas horas para preparar uma receita especial. Risoto de camarão, postas de salmão grelhado, ramo de salsa, ilhado por molho de espinafre. Uma salada de alface crespa com palmito picado, atum, hóstias de nabiças. Louça portuguesa e talheres de algum designer italiano.
A garrafa de Dão trazida pelo pai foi ter ao lado de outra, mais baixa e bojuda de um Calamares de safra recente. Essa garrafa, ao lado de Sancho, era como um Dom Quixote à frente de pai e filha, grandes moinhos, reais, de braços que circulavam para se servir.
Lys contou que, naquela ocasião, de modo algum premeditava fazer perguntas ou indispor o pai com indiretas. Exporia seu melhor lado, solidário e confiante, sem autocomiseração, enfim, transmitir a imagem de uma garota crescida e resolvida, ainda que sem a ajuda paterna e pronta para seguir adiante, mesmo agora sem a presença da mãe. Mas não foi isso o que aconteceu.
Fez arranjos e ajustes e, minutos antes de o pai chegar, acendeu velas, então olhos de luz, amendoados como gueixas, num aparador de canto. Luz bastante, ela refletiu, para esse encontro às escuras. Os anteriores, quase fortuitos, não acrescentaram muitas peças a este mosaico de sentimentos e cacos. Por dentro do vestido, a pele, à véspera do instante, umedecia a fina seda. E, por dentro da pele, ela se convergia, quem de fato habitava o seu corpo. Por isso, ela se concentrava em algum quadro de Degas ou Van Gogh, num enorme esforço de autocontrole. A exemplo de outra genética animal e, por conta da ansiedade, Lys me confessou que, até o pai chegar, involuntariamente, urinara vezes seguidas em calcinhas trocadas.
Era esse, então, o quadro, disse Lys. A garotinha tinha crescido, era bela agora, beirando em poucos dias, o status de mulher e, por conta de tudo que foi doído e invisível, queria sentir ser aceita por quem um dia a havia abandonado. Não era mais a fase de peito e dente-de-leite, ele tinha de querê-la de volta por quem ela era, ou fazia conta de ser.

Estava pronta, pensei, para ter o coração que batia fora de mim, embora algo me dissesse para estar preparada para uma possível desilusão. Aliás, como eu sou a própria Lady Murphy, disse Lys, rindo de si mesma, a desilusão parecia inevitável. Como, na verdade, foi, Ulisses. Poderia continuar essa história só para mim, porque só a mim ela diz respeito, mas ela me fez crescer demais esses anos. Foi meu fermento de mulher e não pode ficar restrita a mim.
De minha parte, vendo os fatos também a certa distância, penso que aquele encontro, logo desencontro, foi determinante na formação do seu caráter, ao mesmo tempo firme e sedimentado, para a causa de todas as mulheres. Para mim, na melhor das hipóteses, as emoções dessa noite foram controvertidas e, na pior delas, óleo de cobra.
Também para Lys foi um começo difícil, pânico, de outro jeito de se fazer entender, usando afinal palavras. Palavras como armas brancas, guardadas sem uso por muito tempo na infância e por toda a adolescência e, nesse jantar, saindo da bainha, e cortando. Mesa de jantar, louça de família. Talheres: piores punhais.

E a parte do diário, pode pular?

Então: até aquela fatídica data, Lys tinha sido diferente em tudo, até na forma de expressar seus sentimentos. Tímida e introspectiva, pouco se comunicava por palavras. Usava mais mímicas ou gestos. O silêncio para ela dizia o suficiente. Seu diário íntimo era mais do que um exemplo. Seu diário, estranho diário, não era de palavras, mas de figuras. Nos primeiros anos, feitos a lápis de cor.

Como toda a infância deveria ser, disse ela.

Adolescente depois, os temas visuais já eram à esferográfica, a bico de pena, lápis de cera, aquarela, nanquim, guache, tinta acrílica e o que fosse mais apropriado para escrever, ou melhor ilustrar o que ela estava passando.

Tive sete diários até hoje, disse ela, de um jeito meio convencido, cada página um motivo, na parte superior, apenas o dia, o mês e o ano. E, ainda nesse caso, não eram palavras, mas outro alfabeto. Os dias eram representados por luas, estrelas, raios ou arco-íris. Os meses por begônias, dálias, brincos-de-princesa, lírios, vitórias-régias, bocas de leão, lilases, et ceteras. Os anos eram sóis, novas e anéis de Saturno. Nenhuma palavra. Nem como legenda.

Quando ela me contou sobre a existência desse inusitado diário, lembro que fiquei emocionado. Até o último cílio. Confessei, então, que, se não a tivesse encontrado primeiro, o personagem do meu livro, por certo, teria se apaixonado antes por ela. Lys fez um ar interrogativo e eu continuei. Porque vocês pensam o mundo, senão com a mesma dialética e ideologia, pelo menos com os mesmos olhos. Cor, forma, arquitetura de luz. Lys se mostrou ainda mais curiosa e, eu, afagando sua cabeça, contei então em tom de mito e fábula, a história que eu tinha escrito.

Querem mesmo que eu leia?

Li. Num estranho país, a poucos anos daqui, um pintor assume o poder e inaugura uma nova ordem: as placas das ruas são pintadas com flores e bichos. O papel-moeda perdia os zeros e os outros números, e começaram a circular notas de Van Gogh, Picasso, Degas, Dalí e Delacroix. Os RGs agora eram hologramas. Nos bancos, senhas visuais. Em vez de nomes e datas nos jazigos, desenhos. Nos livros, histórias quadro a quadro. Nos jornais, foto notícias. Nas TVs, apenas cores, formas, bichos, paisagens, rostos, sorrisos. Nas rádios, Wagner, Bach, Beethoven, Mozart, ou músicas ligeiras, sem letras. Os letreiros de ônibus: estrelas, raios ou arco-íris. As placas dos carros: signos. Nos outdoors, naturezas-mortas, ou então, da Coca-Cola apenas as ondas e, do Marlboro, só a bandeirola do Leo Burnett. Nas telas, o cinema mudo. Na vida real, a exterminação de papagaios: espécie nociva, segundo a nova National Geographic. Na Bíblia, as novíssimas ilustrações. Nas igrejas, o Cristo crucificado sem o copyright © Inri. E, em vez de máquinas de escrever, máquinas de desenhar, com teclas de lua, sol, ondas, nuvens, raios, sorrisos, olhos, cruzes, estrelas, et cetera.

Como termina a história?
As máquinas de escrever foram parar no Cemitério das Palavras. Os livros antigos, recolhidos e reciclados em rolos de papel-higiênico. O mal da fala, combatido, por lavagens cerebrais e campanhas de vacinação. E até o alfabeto Braille, o pintor tirou de letra – finalizei.
Como termina a história?
Não termina, respondi. O pintor ainda governa esse utópico país.
?
Ele espera a sua vez de ser correspondido pela mulher que, dia a dia, descreve um país em seu diário, em forma de desenho, disse eu sorrindo.
Em forma de coração, corrigiu Lys.

Essa dupla digressão, com os senhores e sobre o pai de Lys, serve para ilustrar que ela sempre pôde superar a ficção, tão mais interessante quanto inefável. E propriamente essa palavra, inefável, poderia servir. Na conversa com o pai, a filha sempre respondia com os olhos, palavras curtas, uns sins sempre borrados por guardanapos. Batom cor de avelã, manchas verdes do espinafre, promíscuas.
Quase muda e ideal: deixava o pai falar. E ele falava muito, sem parar. Sempre bem articulado, claro, quase cansativo.

Pensei que, agindo assim, disse Lys, eu pudesse disfarçar conflitos mais sérios entre pai e filha, entre ele e eu. A certa altura, pensei que tinha sido uma ideia apressada, convulsiva, insana mesmo, de ter convidado o pai invisível há tanto tempo para posar como familiar. E ele, ao mesmo tempo em que se empanturrava de comida, mais intumescia sua boca com palavras. Bufão.
Bom esse Calamares, disse ele, emborcando a taça, depois de ter sentido o bouquet, visto a safra e citado a vinícola.
Aham – assentiu Lys.
Sabe como o fabricante desse raro vinho consegue a agulha?
Agulha?
É, esse ponto ácido que se sente no palato. Sabe como se consegue?
Não.
Simples: eles acrescentam carne de carneiro para fermentar junto com as uvas.
Simples?
Sabe como eu sei? Seu avô, ainda em Portugal, me transmitiu esse segredo industrial, como se fosse um bem de família. Pode ficar orgulhosa desse homem, filha, quando eu tinha lá meus oito anos, eu mesmo o vi pisando as uvas com os pés descalços para dar origem a um vinho maduro, fino, caseiro. Foi seu avô que cunhou a frase: “De vinho e mulheres, sou um connaisseur”.
Sim.
Mas não é só o vinho que está ótimo. O risoto, o molho de espinafre, sem contar o próprio salmão. Puxa, nem posso acreditar no que estava perdendo há tantos anos – disse ele.
Não, pai, eu é que estava perdendo, disse eu, sem saber se tinha sido ambígua. A sua companhia, pai... É disso que estou falando e o que eu estava perdendo.
Deve valer mais do que essas receitas de mãe para filha, não? Perguntei eu, sem assumir, contudo, uma posição reativa, revanchista ou acusatória.

O pai, raposa data venia, sentindo o ar grave, antes mesmo de ser nominalmente citado, o que, de fato, aconteceria cedo ou tarde naquela noite, foi logo tratando de advogar em causa própria.

Sabe, filha, teria sido uma fraude eu não ter partido naquele dia, disse ele. Se houvesse amor, eu teria resistido à falta de um seio.
Se houvesse amor...?
Você não teria me perdoado depois, se, naquele dia, eu tivesse ficado.
E quem disse que perdoei você antes?
Seria infeliz, como tantos pais, continuou ele, que nunca ousaram e, por isso, anularam a vida dos filhos. Deus é prova de que tentei.
Deus? Ele também não é invisível?
Não poderia sacrificar a minha vida, filha, disse ele, entornando mais um copo de vinho tinto goela abaixo. Depois, sabia que você não passaria dificuldades: tua mãe, mesmo incompleta, era uma mulher forte. Forte, filha, porque a dúvida divide, enfraquece. E, eu, na época, era o próprio fragmento.
E tinha a tia Siena, que, se não usava calças, poderia desempenhar outro papel, próximo e à altura. Completou ele, com aquela boca gorda cheia de dentes.
Não era bem assim, pai. No começo, passamos dificuldades. A mãe comeu o pão que o diabo amassou. E eu, disse Lys, o leite mais amargo possível.
Para ninguém é fácil, sei que não é, disse ele, com o copo de vinho entre os dedos. – Fui honesto comigo mesmo e também com a sua mãe: quando descobri o fim do sentimento, ela foi a primeira a saber.
E comigo, quem foi honesto?
Olhe, filha, fiz a mala com as minhas coisas naquela hora mesmo, peguei um táxi e fui passar a noite num motel barato.
No dia seguinte, não sentiu falta de nada?
O quê? – questionou o pai, segurando o copo de vinho contra a barriga com as duas mãos.
A culpa, pai. Não vi ninguém guardar a culpa na mala. Não estava entre as cuecas? Esqueceu comigo?
Ah, então, minha filha, vire promotora e me acuse, disse ele. Mas que culpa e, como pode saber, se você era um pingo de gente?
Por isso eu sei, pai: a culpa da mãe. Por ela ter extraído o seio esquerdo.
Como pode?
Ora, pai: a culpa foi crescendo comigo, óbvio, mamava só no seio esquerdo. O seio extraído. No direito, dizia a mãe, eu não me acostumava: leite ruim, logo não demorou a empedrar e secar. Concluindo, pai: para mim, uma mãe incompleta. Para você, uma mulher. Incompleta.
Tudo obra do acaso, filha. Se, para você, não tinha mais leite, para mim, algo também faltava – disse ele, empurrando as últimas palavras com mais vinho.
Vamos mudar de assunto. Não quero que pense que, além de culpa, há problemas e outras dívidas a acertar. Depois, hoje é uma visita.
Não seja por isso, filha. Se faz bem a você, continue.
Sei lá como tive coragem de falar tudo aquilo, Ulisses. Tinha que ver: fruía, pelos meus braços, uma espécie de febre e um tremor. Depois de tantos anos, falava de igual para igual com meu pai, que, naquela noite, deixara de ser invisível, para ganhar alguns contornos.
Continue, continue – disse ele.
Sobremesa?
Aceito, disse ele, colocando os dedos na minha mão, como num mouse. – Mas depois de você falar tudo o que tem para me dizer. Não perca essa chance, eu estou aqui, sou seu pai e quero ouvir tudo. Tudo.

Voz embargada pela emoção. Ou pelo vinho. Não me deixava enganar. Seus olhos procuravam os meus, mas eu ainda me sentia frágil, Ulisses. Não tinha certeza da minha força. Deixei cair os olhos sobre o cristalino verde da gelatina. Como levantar os olhos? Enquanto isso, o pai falastrão clicava o dedo indicador na minha mão em punho sobre a toalha da mesa.
Depois, Ulisses, tudo começou. Ele se levantou da mesa e veio ao meu encontro: colocou as mãos sobre os meus braços e, ainda sentada, me abraçou por trás. Tentei ficar fria e indiferente: não adiantou, ele descia e subia as mãos pelos meus braços. Ensaiei levantar e me livrar de suas mãos e foi pior: fiquei totalmente imobilizada entre seus braços. Nesse instante, chorei, copiosamente. Como nunca antes. O pai também se emocionou, ajudado pela bebida.

Não chore, filha. Não chore.

Aos soluços, fui parando. Minhas lágrimas desenharam na sua camisa a minha máscara, que me encarava e incriminava. De todo modo, nos desgarramos e fomos para o living, onde ficamos, um em cada sofá, formando um ângulo entre nós. E foi por aí, Ulisses, que ele citou o seu nome. Não é nada disso, você vai entender. É como voltar para Ítaca, como Ulisses. Eu fiz silêncio, pensando que ele fosse entrar no blablablá e usar a metáfora da volta, mas não foi isso o que aconteceu.
Ele emudeceu e eu disse:

Pai, quando saiu de casa, foi para não voltar mais. Por que não diz isso logo? Idiota a mãe que ficou esperando por todo esse tempo.
Filha, você precisa tentar entender: aí existia amor. Ainda que paradoxal e mais em sua mãe.
Que destino sobrou para ela? – retrucou Lys. Sem seio, sem autoestima, que outro homem frequentaria sua vida e seu corpo, incompleto?
E por que teria de ser eu?
Por fidelidade...
Eu voltei, não?
Por outro motivo. Foi porque ela extraiu o seio, que você partiu, não foi? Foi o câncer? Não precisa responder, se não quiser.
Acredite: antes do seio, o câncer tinha comido a relação. Não julgue seu pai assim: venda nos olhos, esse sentimento equivocado, de viés.
De viés, sim. Equivocado, nunca.
Não posso concordar com você.
Não concorde, então.
Sem querer mudar de assunto, o vinho acabou – disse ele.

Levantou-se e levou o copo vazio até a mesa e foi pegar uma garrafa de bourbon.
Quer gelo?
Gosto cowboy.

Houve então a mistura de bebidas, emoções e conversas a partir daquele momento. Lys me confessou que aquela noite foi a mais doída e estressante de sua vida, porém, necessária. Exorcizar o pai, o demônio mais difícil.

Compreenda: minha decisão não tinha a ver com você. Se, naquele dia, não mostrasse coragem, sentiria ódio de mim mesmo para o resto dos meus dias.
Não, não foi você quem sentiu ódio de si mesmo...
Não precisa entrar em detalhes, eu entendi.
Será?
Para isso, ser advogado ajuda.
Talvez, por isso queira ganhar sempre...
E essa não é a causa humana?
Não, trata-se no caso, da própria filha. Pare, portanto, de advogar em causa própria.

Breve pausa. Silêncio de ambas as partes, tácito. Aproveitei para fechar os olhos. Preferia, às vezes, os silêncios à profusão de palavras. Não sabia se queria ou não ter pai. Dependia de mim, Ulisses. Não sei se deveria dar outra chance ao homem que marcara tanto as nossas vidas. Fora que minha economia emocional estava deficitária, em descalabro mesmo. Trocaria a falta da mãe pela aceitação do pai? Minhas emoções por outras? E tudo o que tia Siena me revelara sobre aquele homem? Naquele momento de trocas simbólicas e economia de outro mercado, pretendi então a mais-valia. Queria o resgate do amor-próprio e, paradoxalmente, o amor caminhava em outra direção.
Enquanto ele tomava mais uma dose de bourbon, eu experimentava uma ou outra lágrima. Essa bebida destilada em segundos e, contudo, adormecida nos últimos dezoito anos. Não havia uma única célula do meu corpo que contasse outra história. Por outro lado, Ulisses, eu ainda me sentia toda tímida no jeito de ocupar meu corpo. Minhas mãos terminavam em til sobre as pernas, juntas e trêmulas. Havia um quê de possível abalo sísmico partindo do coração e que se espalhava pelo corpo todo. A mulher há tantos anos inativa estava afinal à beira do colapso? Intuía lava e a certeza de não fugir mais de mim mesma. Dessa nova fase de autoconhecimento. Saber que, de um jeito ou outro, tudo que iria acontecer me fragilizava ainda mais, por antecipação.
Súbito, o pai sentou no seu antigo lugar no sofá, fazendo ângulo com os meus joelhos. Seus dedos lambiam, furtivos, os meus cabelos. Depois de breve indecisão, estendeu o braço sobre sua perna e segurou as pontas dos meus dedos. Puxei a mão e tornei a precipitar meus olhos sobre o tapete da sala. Ele falou e não consegui mais ouvir o meu silêncio.

Chega de sentimentos oblíquos, disse ele. Estou aqui agora.
Sentimentos diretos, então: eu sofria, sim, com a sua ausência, pai. Pesadelos, ataques de asma, lágrimas. Era isso o que queria ouvir? – perguntei eu, levantando e tornando a deixar cair os olhos em algum ponto do chão.
Queira desculpar, disse ele, mas minha sobrevivência dependia de um ato de amor ao contrário. Foi o que eu fiz.
Isso o que eu ouvi, Ulisses. Parece que um sentimento ao contrário, para ele, explica tudo. As pessoas vomitam isso como algo que caiu mal, estragado.
E você, como reagiu? – perguntei, afinal.
Eu disse a ele que, em minha opinião, não seria nunca um ato de amor, mas de crueldade.


Ato de crueldade, pai.
Então, eu insisto, filha: um ato de bondade ao avesso. Pode ser?
Não sei, pai. Tento entender, mas não consigo.
Ainda bem que você não consegue, filha. Porque entender é limitado.

Limitado, isso o que ele falou. O filho da puta. O que me deu nos nervos, ou antes ia completando até a borda o cálice de ira, Ulisses, é que ele manipulava as palavras como queria. Ele era bom nisso. Pior é que, no momento seguinte, procurei ferir aquele homem, mas caí no ardil das palavras.

Não sei, se, depois de todos esses anos, você tenha o direito de estar aqui.
Quem mais?
Perguntou ele, tornando a segurar minha mão.
Não tive pai, nem colo. Quando mais precisei...
Tempo.
Não deveria ter falado assim, Ulisses, mas aquelas palavras escaparam ingênuas da minha boca e ele aproveitou para tentar me conquistar.
O que aconteceu? – perguntei
Não pense que é fácil.
Sei que não.
Depois de uma pequena pausa, Lys pincelou a outra face do pai, falando com as mãos.
Você tem pai quando mais precisa – disse ele, me puxando para o colo.

Pronto, pensei, eu caí na armadilha: as pernas se fechavam. De repente, senti um abalo sísmico, forte, por todo o corpo e, aos soluços, fui me vertendo em lágrimas. Na verdade, ele também não estava preparado para me ver tendo uma emoção tão forte. Tentava me acalmar como podia. Abraço, arcaico, forte.


Essa é a parte que o pai confunde tudo. Pode pular?

Pois bem: o que mais incomodava Lys era ter ficado naquela posição e, ao mesmo tempo, enxergar como outra pessoa, sendo vista por si mesma de fora.

O que eu via? Via mais do que uma garota fragilizada e precária. Mais do que uma filha mal resolvida nos braços e no colo do pai. Eu via, Ulisses, a eterna cena de ventríloquo com seu boneco no colo: via a mulher sendo, de novo, dublada pelo pai. Porque na horda ou em qualquer outro lugar, sempre alguém nos dublou, padrasto, irmão, marido, o poder do macho. E eu não poderia estar enganada, porque era o que eu sentia. Imóvel, no colo do pai, como uma garotinha. Nessa hora, eu não me ouvia, tanta algaravia de vozes. Entanto, via o quanto o imobilismo era perigoso. E eu me deixava ali, na ilusão de menina e no colo do pai.
Não era para menos. Também sentia seu coração forte, policial, bater nas minhas costas. Seu peito chiava. Tremia toda, sentada nas suas pernas, a ponta do sapato alto tamborilava como um código no assoalho. Colo, cavalo que me afastava onde eu me dividia em lábios, nádegas e pretexto. De todo modo, o coração era motor, amortecendo cada fibra do meu corpo.
Eu estava ali, mas não estava. Faz algum sentido para você? Eu me via num sonho, em que tinha que acordar rápido. Porque era meu pai e também não era. Inclusive, no sonho, seu rosto era invisível. Queria falar, mas só mexia os lábios. A voz que eu ouvia não era a minha, era do pai, que continuava a me dublar. Verti uma ou outra lágrima e ele me enxugava, primeiro com as almofadas dos dedos e, depois, com as almofadas dos lábios, o meu rosto. Suas mãos nas minhas, como louva-a-deus em núpcias. Mãos que não paravam, sempre em atividade, trajeto de suspeito carinho.
Quando, de fato, suspeitei que seus dedos vasculhavam os desejos mais insuspeitos e torpes, tentei impedir, mas estava imobilizada. Eram mãos ou os fios do sono, questionei. Tentei gritar: a mordaça inefável dos sonhos. Ainda a voz do pai. Procurei eu mesma ler meus lábios e não conseguia traduzir toda a minha confusão. Eu me via na posição de toda mulher, sempre em consentido sacrifício. Não é preciso que a amarrem, ela já se desnuda e se oferece em holocausto: faz parte de sua natureza ou de lenta estratégia?
Sentia, Ulisses, as mãos pousarem, às vezes, na minha cintura, como que equilibrando na perna e no cavalo daquela emoção. Outro corpo sentia o meu. Minhas mãos semicaídas no vão do meu vestido entre minhas pernas. Elas queriam se mover, mas eram dissuadidas por outras mãos. Pensei: aranhas de mãos que, primeiro, conquistaram minha mãe e agora eram como algemas em meus pulsos. Sentia que seus desejos levavam a melhor sobre o aspecto de eu ser sua filha. E que tudo isso fazia parte de um jogo sutil. Ele me queria onde eu estava, sua garotinha, que ele podia manobrar e dar voz. Não digo que eu não me prestasse ao papel, Ulisses, se eu não continuei assim foi porque ele traiu minha confiança. Pode parecer pouco, mas foi muito. Foi tudo.
Momento justo que me preparava para a entrega e ter o pai de volta, foi que tudo aconteceu. Senti mais abalos: soluços que desciam do peito e reverberavam no osso ilíaco. Por conta de outra temperatura, minhas coxas tremeluziam de febre. Pernas quentes e suadas do meu pai. Minha mão se desprendeu da outra e, roçando o tecido da sua calça, foi encontrar a fonte de todo o evento. Aí, sim, Ulisses, o princípio do fim. O halo da tragédia, a decepção permanente.
Minha mão tateou disfarçadamente um pouco mais, buscando a certeza: sim, era o sexo quente e viril sob o vestido, pronto e desavergonhado do homem que tinha selado o destino da minha mãe. Por momentos, tudo girou na minha cabeça, a revelação doía. Não podia evitar imaginar o que poderia também acontecer comigo, a fama do pai com as mulheres já o precedia. Não que a mãe uma única vez desse com a língua nos dentes. Ao contrário: túmida língua sempre para me poupar. Era, contudo, a língua viperina da tia Siena que agora mexia em meu subconsciente e me colocava, refém, no lugar da mãe: sentia impotência e nojo, então. Aquele homem me abrindo as pernas à força e me ungindo para o sacrifício. Mordia a minha pele mais rosa e sensível, me fazendo gritar. Depois me apunhalou diversas vezes, até desabar como árvore sobre meu corpo. Um homem que adorava quando, igual à mãe, resistia: ele me socava os seios e eu desmaiava, acordava e mais um tapa na boca, deixando meus lábios carnudos de inchados, onde ele colava os seus, sugando o sangue represado. E quando eu imaginava que o evento me acabara, por ter orgasmado e me sujado toda, ele recomeçava pelo meu avesso: me pôs de bruços para salivar e comer meu rabo. Tinha sido assim com a mãe, sina igual para a filha. Por que seria diferente da história que a tia Siena havia me contado?

Por que você não iria acreditar, Ulisses? Olhe à sua volta: vivemos numa sociedade do assédio. Desde menina, depois pelo chefe ou calhorda qualquer de poder igual. Um assobia aqui, outro só consegue ver lá um pedaço de carne. Mulher, isso, um pedaço de carne. Eu mesma, Ulisses: na igreja onde a mãe me levou para o catecismo, o padre passava a mão nos meus peitinhos. Era só ela dar as costas. Nunca falei, mas não voltei mais. Aquele padre me assustava: sua bondade gasta me enojava.
Então, Ulisses, naquele momento do sonho, eu me via no lugar da mãe, jogada na cama, sendo mais uma vez massacrada por quem deveria me amar e proteger. Vá vendo, Ulisses, tudo isso era um evento na minha cabeça, insanidade mesmo, mas que poderia acontecer naquele momento. Ainda que o aspecto moral talvez fosse a definitiva barreira para um pai se deter. De todo modo, acordei. Revoltada. O cara perdeu a noção. E, me enchendo de coragem, peguei firme aquele volume teso sob a calça.
Levantei num sobressalto. E ainda agarrando seu sexo na mão e na unha, soltei a língua. Verdadeira retaliação. Ele teria que me ouvir. Pela primeira vez, dominava a situação e não desejava perder a oportunidade. Castração simbólica, condição primeira para deixar o pai impotente e não ser violentada.

O que é isso, pai?
Tá excitado? Quer me comer?
Pensou na mãe? Mas eu não sou ela. Sou sangue do seu sangue. Por que então outro sangue branco sobe no termômetro? Por quê, pai?

Eu gritava muito, Ulisses. Minha boca era uma catapulta de palavras, saliva e cólera. Vociferava. Olhei para aquele sujeito, que nem considerava pai, e podia ver que ele suava. O canalha estava aterrorizado. Mudo. De tanto procurar viés, estava agora na posição de réu. Cadê o advogado fodão? Provar sua inocência, de que jeito? No colo do acaso, ele agora. Ele mexia os lábios, mudos: eu é que falava sem parar.
De jeito nenhum, Ulisses. Estava ali para levar aquilo até o fim. Retaliar o crápula. Mais que eu, ele sabia que tinha atravessado a linha moral. Estava agora sob o domínio da culpa. Situação óbvia, pânica. Não tive dó. Eu era a personagem de mim mesma: teria que ser cruel para resgatar o meu amor-próprio.
Larguei o seu sexo nojento e dei um pulo para trás. Comecei a suspender o vestido, mostrando as coxas. Arranquei a calcinha e joguei-a na sua direção dele. Abri as pernas e apontei o sexo com a seta esmaltada da unha.

Era o que você queria? Então, venha. Venha comer a boceta da filha. Por que não vem? Ainda sou cabaço. A mãe também era, não? A primeira vez sai sangue, pai, depois a gente acostuma com a dor e com os homens. Por que não vem me arruinar? Venha espremer essa carne no meu corte. Quer chupar antes? Jogar esperma na minha boca? Pode vir. Por que não é macho com a própria filha? Abrindo mais as pernas, sim. Obscena.
Padrão de folha caindo? Árvore desabando. Agora quem aterrava os olhos no chão era ele, Ulisses. Constrangido, incomodado de estar ali, colocava a mão e a persiana de dedos nos olhos. Estava mal, no bico do corvo. Eu, exterminadora. Agora mostrava meu traseiro.

Ou quer o meu cu?
Quer enfiar esse cacete sujo no meu ânus cor-de-rosa? Bem que a tia Siena contou que você é doente por bunda. Não é essa a posição que a mãe ficava quando estava grávida?
Grávida de mim, pai. De mim.
Vai dizer que não?

Perdi a classe, Ulisses. Para mim, todo esse veneno agiu no sentido de cura: cuspir tudo para fora e me acalmar. Para ele, ao contrário, recebia a picada. O esperma para dentro. Veneno ao contrário, que ele nunca experimentara.
Tudo aquilo tinha sido a soma de erros e equívocos. Ele estava afinal abatido, derrocado. Louco para dar o fora dali. Tinha sofrido um enfarte moral. Estava um trapo. Ajeitou a calça, pegou o costume risca de giz e sinalizou, mudo, que iria se retirar, caminhando em direção à porta. Foi aí, Ulisses, que me ocorreu uma ideia, cruel, admito e, mais que depressa, corri em direção à porta e tirei a chave. Enquanto ele parava, surpreso e sem ação, eu girava a chave antiga e colonial na mão. Fui sentar de volta no sofá.
Cansado de esperar ao pé da porta trancada, o filho da puta fez mais uma pausa. Quando veio na minha direção, puxei o vestido até à cintura, abri as pernas e, nefária, afastei os pelos púbicos, introduzindo a chave nos grandes lábios, como uma fechadura. E esperei.

Não acredito que você fez isso – disse eu, surpreso e hilário.
Pois acredite.
E aí?
Aí é que em casa ele não ficou, disse Lys rindo. Tinha que ver a cara dele, Ulisses. Um canalha, agora temeroso, tremendo os dedos. Tentou evitar meus olhos, não conseguiu. Eu queria abrir no seu corpo um corte fundo, quanto o sexo de mulher, cova, corte que nunca se fecharia para sempre em sua memória. Também, sem dizer palavra e cheio de dedos, retirou a chave de mim e logo abriu a porta para se perder nas escadas. Sem também dizer palavra, atirei o sapato de salto alto atrás daquele homem, degraus abaixo...
E nunca mais o vi mais gordo...

Jogo de amarelinha: Lys saltava de um assunto para o outro. Eu estendia a mão sobre a mesa para pegar a dela, mesmo que apenas por alguns momentos, mesmo que só um dedo tocasse a sua pele. Telegrama dos dedos, mensagem tácita recebida: Lys respondia com o brilho dos olhos, mas eram as suas palavras que buscavam outras ou meias palavras, para se juntarem na mesa, em outro tipo de dominó de emoções. Nós éramos, cada um, de seu lado, duas peças que representavam esse dominó, sempre buscando afinidades eletivas de um assunto a outro. O outro lado terno: ela correspondia ao meu olhar e gestos, devolvendo o mesmo carinho. Na sua outra metade: face lisa e silêncio. Também ouço o nada, mas essa é apenas a minha metade, porque a outra são reticências...

Se eu viajasse amanhã, disse Lys, você iria querer me conhecer hoje?
Iria.

Nossos rostos, então, duas pedras de dominó: um ao lado do outro, não sei por quanto tempo. Houve o beijo e ponto. Não conseguimos mais nos desgrudar. Enquanto eu fechava os olhos, tentando me concentrar no seu doce batom e saliva, Lys era totalmente ao contrário: ela não fechava os olhos, ou antes, os abria mais, concentrando mais força nos lábios, úmidos e túmidos na sucção. Ela me comia com os olhos ipsis litteris.
Saímos do bar com mais fome um do outro. Nus, nos engolimos dentro do carro, totalmente embaçado pelo hálito de todas as nossas células. Depois o sexo subiu o elevador. Lys abriu a porta do apartamento e, na sala, outro beijo e o mesmo jogo. Pedra contra pedra, corpo contra corpo: faísca.

Pode pular essa parte?
Mãos em núpcias, mas o corpo reagia com velocidade e certa violência. Lys gritava e me incentivava até o último músculo. Mesmo quando a carne espuma na outra seda, o amor não termina. Não terminava. Para nossa surpresa, a química continuava a reagir enquanto houvesse uma simples gota em cada célula. A dor no corpo servia só para nos levar adiante. Depois de horas, nossos corpos ainda perdiam água, mais leves, porém, em movimentos exatos. Um balé em cada gesto, como se sempre tivéssemos ensaiado o amor juntos.
Corpos giram, elásticos chineses. Quando o corpo reconhece o amor, acontece a pequena morte. Nem pensamento ressuscita. Nossos corpos suados se colaram para dar uma chance aos sonhos.
Olhos para dentro, não me lembro do que vi. No entanto, ao abrir os olhos vi que estava dentro de outros olhos. E pálpebras, retinas, íris e pupilas. Lys estava debruçada e olhando fixamente para mim. Achei estranho. Era a primeira vez que despertava não para ver, mas para ser visto. Óbvio que foi um susto daqueles. Estremunhei braços e pernas, num ímpeto. Lys, porém, mais ligeira: seu corpo nu e quente ficou sobre o meu.

Desculpe, amor. Desculpe. Não pretendia te assustar, apenas que eu fosse a primeira coisa que você visse ao abrir os olhos.

Refeito do susto, o corpo tresmalhado voltou para se unir ao outro corpo e ter um pouco mais do mesmo. Sol a pino: mais uma metáfora para o que ainda acontecia naquela cama. A química dos nossos corpos era a mesma da noite anterior. Intensa como a fome. A fome voraz como ela. E ela como eu. Febre que resistiu ao hálito íntimo da tarde, e só paramos quando nossos corpos explodiram pela última vez. Quando o sangue voltou, zunindo, ao cérebro, é que houve, em mim, reintegração e posse. Dor aliviada, o corpo reconhecia seu limite.
Levantei, as pernas tremiam. Outra batalha, mas eu precisava tomar água e, necessariamente, ficar livre de outros líquidos. Outro susto: todos os quadros nas paredes da sala cobertos com panos lilases, como nave de igreja na Semana Santa com os santos velados. Os sofás e outros móveis também cobertos, nesse caso lençóis brancos, criando volumes e esperas. Nesse curto trajeto até ao lavabo, compreendi tudo: o amor que mal começara já estava com os minutos contados. Os panos hibernariam os ursos brancos nessa sala, a casa daria um tempo. Decerto, Lys partiria. Direito de impor condições? O que nasceu há poucas horas teria essa força? Decido que não tocaria no assunto, sem deixar de reconhecer a minha falta de sorte. Olho para o meu sexo: inchado e cor-de-rosa.
No caminho de volta para o quarto, ergui os panos como se levantasse as saias roxas à altura dos meus olhos. Pude observar, num misto de luz e sombra, os quadros dessa não exposição. As telas, sem dúvida, surpreendentes, pelo que pude perceber, na técnica e conceito. Não havia uma escola que definisse ou delimitasse o trabalho do artista, mas o encontro feliz do que cada uma tinha de melhor, para expressar a ideia. E que ideia era essa em cada quadro?
Numa rápida impressão, curto espaço de tempo clandestino que procurei não exceder, notei que as seis telas estavam lincadas entre elas pelo tema e pela textura. Cada uma era um rosto pintado sobre uma grande cabeça de cebola. Como um pentimento, cada camada de tela tinha uma imagem, que, somadas e justapostas, davam o rosto final, ou então, a máscara de cada personagem retratado. Percebi mais: que Lys tinha um trabalho consistente, à altura dos artistas do Museu Lasar Segall e da Pinacoteca. Baixei a última saia roxa e voltei para o quarto. Lys despertou quando eu vestia as calças e afivelava o cinto.

Então, não foi sonho. Você existe mesmo? – perguntou Lys.
Em carne e suor, respondi.
Venha aqui me dar um beijo – disse ela, abrindo os braços.
Não vai se atrasar e perder o avião? Perguntei eu, entre burocrático e irônico.
Sei, você tá chateado...
Chateado não é bem o termo.
Sei como se sente.
Sabe? Como pode saber? – devolvi o clichê.
Faço uma vaga ideia, melhor assim? Mas sei como eu me sinto.
Não é igual.
Pode não ser. Mas eu não agiria diferente, se fosse agora. Não deixaria de conhecer você, ainda que soubesse que sofreria com a minha partida e a sua falta.
Não importa, disse eu, prometi a mim mesmo não tocar nesse assunto.
Importa, sim – disse Lys, num tom acima. Depois, não foi a mim que prometeu.
Costumo cumprir minhas promessas.
Ao pé da letra, então: se não vai tocar no assunto, pode, ao menos, ouvir, ver, sentir? – perguntou Lys, conclusiva.
Continue.
O que posso dizer, disse ela, é que você foi o escolhido. E, ao ser escolhido, avisado. Não pode reclamar, você aceitou os termos. Ainda lembro cada palavra, ou não é escritor de palavra?
Continue.
Por favor, Ulisses, não aumente a culpa, minha e sua. Queria saber como alguém pode viajar sem partir corações. Pensa que, para mim, é fácil?
Pois eu me sinto inseto de um dia.
O quê?
Inseto de um dia, Lys, aqueles que vivem vinte e quatro horas. Mas, se prefere outra ordem animal: homem de um dia.
Dramático, aposto que pensa que eu sou assim um tipo de afídeo.
?
Afídeo, Ulisses. Só para ficar no ramo dos insetos, ou dos homens. São pulgões femininos, que já nascem grávidos. E que só acasalam com os machos quando precisam deles. É disso que está falando?
Belos espécimes somos, então – disse eu.
Sinceridade, Ulisses, nenhum homem, até agora, me mereceu. E sobre você, ainda que ideal até aqui, ainda tenho dúvidas. De qualquer modo, mesmo sem te conhecer melhor, preferi que fosse você a um estranho lá fora.
Obrigado, obrigado – repeti, com certa reverência.
O que você queria: chegar a Hamburgo e, tanto tempo carente, deixar que um alemão qualquer ejacule Hegel, Nietzsche ou Goethe na minha cara?
Não sei.
Não se sinta usado.
O problema não é ser usado, é não ser mais usado. Reconhecer que encontrei as águas da rainha e ter de admitir a interrupção.
Águas da rainha, bela metáfora.
Por que tem que ser tudo ao contrário?
Tudo ao contrário, digo eu, disse Lys. Porque quando, no mundo dos homens, encontro alguém com afinidade eletiva, esse alguém aceita fatalismo barato.
Quem se queixa agora? Se também eu ao contrário para você?
Você entendeu, Ulisses. Por que não reage e faz jus ao nome?
O que eu quero dizer é que a lei dos contrários já começa aí, pelo nome. Sou Ulisses ao contrário, um cara extremamente parado, não venturoso. Detesto fazer mudanças sérias, enfim, me mexer.
Por esse ângulo, eu também sou uma Penélope ao contrário: em vez de ficar imóvel, tecendo a tal mortalha de Laertis, prefiro antes ser fiel a mim mesma, para, depois, ser fiel à paixão. Prefiro, sim, partir, viajar, conquistar. E, ao voltar, ver o que acontece.
Uma odisseia ao inverso.
Como pode? Sem sair do apartamento, sem viver, que tipo de escritor?
Você respira, vive, mas ainda não é escritor – disse eu.
Mas, seria mais fácil.
Disse Lys, deixando cair o lençol e revelando os seios.
Não é a garantia de que preciso, disse eu, olhando os dois olhos gordos, saltados do corpo, com dois mamilos no seu centro.
Viver, Ulisses. Há mais cheiros do que palavras.
Para mim, isso ainda não é o bastante.
Há mais cheiros do que dores – continuou ela.
Ulisses ao contrário. Não posso ir contra o meu DNA.

Eu me aproximei então daqueles grandes olhos, beijando túmidas framboesas. O bastante para a faísca e a gente se amar de novo e de novo outra vez. O corpo aprendia que o amor é repetitivo. Desfazíamo-nos em água e, línguas vivas, sugavam um do outro, toda e qualquer gota. Trocávamos águas, explodimos um dentro do outro. Então achamos que isso era amor.

Por que você pinta só homens e cebolas?
Perguntei, quase sussurrando ao seu lado no travesseiro.
Por quê? Não tem por que numa obra de arte.
E se tiver?
Nesse caso, a metáfora é bem essa: homens e cebolas. Eles têm diversas camadas, nos fazem chorar sempre.
Não poderia ter uma versão feminina, mulheres e cebolas?
Não é isso o que acontece, disse ela. Com os lábios firmes.
Há controvérsias.
Não é emoção no varejo. Outro tipo de lágrima a que me refiro, disse ela.
Que tipo?
Lágrimas sociais, disse ela. De direitos iguais. É só por isso que a mulher chora mais. O homem antes de explorar o homem, explora a mulher.
Meu Marx de saias – disse eu, enlaçando seu corpo.
E você acha graça?
Estou rindo?
Brincando, então. Mas a última revolução não será dos operários, será a da mulher, o ser mais explorado e humilhado de todas as culturas.
Brincando? A submissão da mulher, alguém já o disse, de tão histórica, se pretende natural. Concordo com você: é preciso pôr um fim nisso tudo, disse eu, com a voz forte, soprando seus cabelos.
Bom saber que pensa assim, Ulisses. Mas está chegando a hora. Preciso tomar um banho, pôr uma roupa, pegar as malas. Ir para o aeroporto.

Lys levantou e ficou parada por instantes ao lado da cama. Seu corpo era sedutoramente traçado pela luz que se filtrava pela cortina da janela. E, ao mesmo tempo, também detalhado, pela sombra no seu dorso nu, tonificando de cinza o volume duro das nádegas, coxas e pernas. Depois, quando ela tornou a sentar ao meu lado e tão perto de mim, tive a ideia de fechar um olho e, através do seu seio e, na curva perfeita, vedar toda a luz a partir do sol da janela, forjando outro eclipse.
Descubro uma razão para estar apaixonado a cada instante. Comecei a amar seus defeitos. O corte no mindinho, alterando o eixo do dedo e perspectiva da unha. Sua orelha esquerda, levemente desprendida, sobressaindo curiosa entre os cabelos. A cicatriz de menina, a um palmo acima do joelho direito, que parecia sorrir quando Lys dobrava a perna ou retesava a coxa. Pequenos defeitos de fato, frente à grande cicatriz, de mulher, outro sorriso.
Mas era dos defeitos que meu olho não arredava a retina. Não para me habituar a eles, mas no sentido de tornar Lys menos etérea e mais humana. Em outras palavras, seus defeitos buscavam ser a parte de maior interesse: quando ela quisesse se dissipar, fugidia, na memória, seus defeitos iriam trazê-la de volta. Tudo ao contrário.
Enquanto ela preparava o banho e se vestia, aproveitei o lavabo da sala para fazer um asseio rápido. Meu corpo grudava nas partes íntimas, no entanto, em nenhum momento, pensei em usar o banheiro principal e atrapalhar os últimos preparativos de Lys. Banho de gato, usei o perfume e desodorante disponíveis no armário, ajeitei o cabelo. Estava pronto para levar Lys para o aeroporto.
Retrato. Um e setenta e seis, porte atlético, 94 de busto, pele de bronze. Ombros altos e largos de quem pratica natação, esguia. Nenhum grama a mais no abdômen ou onde quer que fosse. O osso ilíaco dava voltas à imaginação, o cóccix, seguindo a marca branca deixada pelo biquíni, acentuava a queda. Do outro lado da maçã, o delta branco envolvia o delta pubiano e o corte. Duas pernas, firmes e longas, mantinham a arquitetura. E o jardim suspenso.
Havia uma coisa próxima à ansiedade. Olho para a falsa figueira no vaso oval, no canto da sala e para a varanda repleta de rendas portuguesas. Também elas não resistiriam por mais de uma semana à ausência de Lys. Estávamos todos condenados. Precisávamos das suas águas, as plantas e eu.

Não se preocupe, disse ela, adivinhando parte dos meus pensamentos. Tia Siena virá aqui regularmente para ver as contas e conversar com as plantas.

Ajudei com as malas, parei um táxi e chegamos a Guarulhos em poucos minutos. Avião atrasado, tivemos tempo de tomar um cappuccino, conversar um pouco mais e, sempre que podíamos, namorar com os olhos.

Posso perguntar uma coisa? – disse Lys.
Claro... que não – respondi.
Risos.
Se, na Índia, você fosse um xá, o que faria?
Eu?
Vou dar um exemplo: se o Sha-Jahan construiu o Taj Mahal para homenagear sua mulher, o que você faria?
Para homenagear você?
Ela sorriu.
Pense bem: olhe que o Taj Mahal, disse Lys, ainda é insuperável, na arquitetura e no símbolo. O que você faria?
Se é assim, disse eu, projetaria outro Taj Mahal. Igual em tudo ao primeiro e bem à sua frente. Mas com uma diferença.
Qual?
Ao invés de mármore branco, usaria o mármore preto. Mais raro e caro.
Pensa que se deu bem?
Penso.
Não esqueça de que esta era a ideia original do arquiteto desse mausoléu.
Então?
Então o quê?
Foi a distância quase impossível entre a ideia e a realização? – respondi em tom blasé.
Mais ou menos isso, disse Lys. É que o imperador, depois de pagar uma enorme fortuna ao arquiteto, cortou suas mãos para jamais realizar outra obra igual.
Quer dizer: fiquei, então, sem as duas mãos?
É o que parece, disse ela, deixando marcas de batom na xícara de café.
Então, sem mãos, não posso escrever um livro para ela?
Outra chance, disse ela. Quer uma história?
A sua?
Uma sobre uma mulher que, desde que viu um arco-íris de 360º quando menina, sabia que teria uma missão a cumprir.
Uma missão?
Que, ano após ano, em sua lenta formação, quase às escuras, lenta crisálida, talvez, teria de preparar as asas para uma longa travessia.
Qual?
Quem sabe? Atravessar águas, como a monarca e libertar, em cada país, a mulher?
E como ela faria isso?
Ora, com polen nas patas.
Risos.

Não faltaram dicas. Lys, afinal, estava se referindo a si mesma o tempo todo. Tinha sido ela e ninguém mais quem presenciou o fenômeno do arco-íris de 360º no céu de sua cidade. Era ela a monarca abrindo as asas e espalhando o polen da consciência da mulher, a partir da velha Europa para o Novo Mundo. Não atentei para as entrelinhas e, por isso, hoje, não posso fazer mais nada senão tentar escrever sua história. A incrível odisseia de uma mulher em sua luta para se libertar, libertando outras mulheres.

Relembrando Rembrandt, Rimbaud e tudo o que a gente falou.
Aham...
Para você, a ação é mesmo uma forma de estragar a força?
Esse assunto de novo?
Responda.
Sim, acho que sim.
Acredita mesmo nisso?
Em certo sentido, sim.
Em certo sentido. Isto é resposta?
Aquela história: Deus é a resposta, disse eu. Mas qual é a pergunta?
Che Guevara fazendo guerrilha na Bolívia, estragou a força? Lynne Cox, a mulher que atravessou a nado o Estreito de Bering, de um país a outro, em duas horas e seis minutos, vencendo a hipotermia, estragou a sua força? Estragou?
Se Immanuel Kant, retruquei eu, suasse fazendo exercícios, tirando um tempo de escrever, não estaria estragando a sua força?
É diferente.
Se uma bailarina, Lys, como você, um dia, tentou passar anos e anos deformando seu corpo apenas para conseguir realizar um pequeno movimento, não estaria estragando a sua força?
Vou ter de levar essa dúvida para Hamburgo comigo.
Hora do embarque. Abraçamo-nos em silêncio, eu de olhos fechados, ela, não. Demoradamente.
Seja o Ulisses do romance, disse ela.
Por Ática, disse eu, erguendo o punho.

O que eu não falei: – De hoje em diante, serei sua Penélope, disse Lys. Não é ela que fica fiel toda a vida? – Bem, na nossa história, Ulisses é quem fica esperando Penélope voltar, disse eu. Toda a vida. – Sua Penélope Lys volta em um ano: um ano, espere e verá – disse ela.
Não falei. Eles não podem nunca saber que Lys é agora Penélope. Penélope Lys. O que eu falei: Lys tomou o avião e eu, um táxi, para casa. Levando ainda, na valise dos lábios, a sobra do batom e o gosto do beijo.



2.

(Continua por mais 200 páginas)







Woman was God’s second mistake.  Nietzsche 1. – E, Deus, é fiel? Cuspo sangue entre uma palavra e outra, eles não se...