Woman was God’s second mistake.
Nietzsche
1.
– E, Deus, é
fiel?
Cuspo sangue entre
uma palavra e outra, eles não se importam, querem a verdade. E eu
torno a repetir: entre nós, apenas uma história de amor ao
contrário.
Ao contrário. Como
toda história a dois deveria ser: começar quando estivesse a ponto
de terminar, crescer na fase minguante e, com energia própria, ser o
próprio movimento, amor-continuum.
Sonhadora ungida
fora de tempo? Não sei. Mas a exemplo do mito do bom selvagem,
ninguém aqui pode dizer que ela é apenas e simplesmente uma
terrorista, ou, ao contrário, uma má terrorista: no dia 11 de
setembro também ela deixou cair, de cada olho, uma lágrima para
cada torre.
Terrorista bom é
terrorista morto? Pare com isso. São necessários laivos e linhas
para outro retrato falado de mulher. Uma que só, de tempos em
tempos, Deus se lembra de fazer e, por isso mesmo, nos faz acreditar
também que Ele existe.
Tudo ao contrário,
então, começou naquela noite. Pátio da Faculdade de Filosofia.
Chovia, as salas de aulas espirravam alunos e ouvintes. Uma ou outra
gia pulava aqui e ali entre as madressilvas, as flores pretas dos
guarda-chuvas, ócio do olho.
De pé, mãos nos
bolsos, por instantes parado, esperava a chuva passar. Ou não
esperava nada. Mais um dia, outra noite gasta, pensei. Tinha assinado
a lista de presença para uma amiga que se encontrava no Xingu. Eu
não esperava que voltasse, nem mesmo como amiga. Nome? Não tem
importância para a história.
Acendi um cigarro,
soltei a fumaça. “Não lembro”. Olhar distante, comissuras
caídas da boca, eu acho. “Obrigado, parei. Não fumo mais. Posso
ficar com um nas mãos? Me ajuda a falar. Não, claro, não com as
mãos”. Ao contrário, então, do que eu esperava, ela deitou a mão
no meu braço.
– Que tal um café?
– Por que não? –
perguntei eu.
– Não aqui na
cantina. No Café Paris?
– Poderia ser
melhor?
– Daqui a meia
hora?
Meu olhar foi
seguindo uma piteira. “O que deu nessa mulher?”, pensei. Sempre
tão distante que mais parecia detestar todos os homens, eu, em
especial e, ao contrário, amar todas as mulheres. Peguei o carro e
fui ver qual era. Um Ford, preto. A chapa, não lembro, não lembro.
– Você gosta de
poesia?
– Gosto – disse
eu.
– Maiakovski?
Sylvia Plath? T. S. Eliot?
– T. S. Eliot.
– E de Rimbaud?
– Assim, assim.
– Je vis que
tous les êtres ont une fatalité de bonheur
– disse ela, me instigando.
– “Percebi que
toda a gente tem o fatalismo da felicidade” – traduzi.
– L’action
n’est pas la vie, mais une façon de gâcher quelque force.
– “A ação não
é vida, mas uma forma de estragar a força” – continuei.
Houve uma pausa. E
aí a conversa passou para outra coisa. Depois do café, pedimos
vinho do Porto. Um Adriano, 1997. O lugar estava cheio àquela hora.
Dissonante, a gente tinha que projetar a cabeça para falar e ouvir o
que o outro tinha a dizer. Cedo para ler lábios? Pode ser.
Como era? Recebia
muitos homens, segundo o porteiro. Gostava de mulheres, segundo os
amigos. Era calma, era nervosa. Era gentil, cruel. Gostava de
crianças, não gostava. Era liberal, comunista. Vestia-se bem, usava
jeans. Gostava do Mick Jagger, ouvia jazz. Sempre com pressa, nunca.
Não tinha família, pais caretas. Extrovertida, tímida. Estudante,
formada. Trabalhava, não trabalhava. Era linda, linda.
Linda é apelido,
disse eu. Nome? Nome de verdade? Conhecia como Lys, era assim na
Faculdade de Filosofia. Não sei. Teresa Lys F? Pode ser. Como eu
disse, não sei.
Retrato falado? Seus
olhos pareciam contar uma história. Tinham o código de luz, o Morse
dos cílios. Eram verdes, profundos, bolinhas de gude. Por isso
também que, depois do café, a coisa continuou. Encontro casual? Que
fosse. Não dava para sair fora, meus olhos nessa teia de luz.
– Posso falar uma
coisa?
– Pode falar duas,
se quiser.
– Tem semana que
estou te filmando.
– Filmando?
– Observando.
– Ah, um tímido?
– Também, mas não
era só isso.
– E o que era?
– Pensei que fosse
do tipo de mulher que gosta de outras mulheres. Por isso nunca
cheguei e falei com você.
– Você pensou
certo.
– O quê?
– Sou do tipo de
mulher que gosta de outras mulheres.
–
– Algo errado? –
perguntou ela, provocativa.
– Hã-hã –
respondi, tentando disfarçar minha contrariedade.
– Pensei que
tivesse.
– Aham. Bem... Na
verdade, agora foi você quem pensou certo.
– Mas isso não me
impede de gostar de homens.
– ?
– Até ajuda.
– Então, não
estou sobrando? – perguntei.
– Ainda não –
disse ela, sorrindo só com os lábios.
Retrato. Nariz fino,
levemente arrebitado. Às vezes, seu traçado lembrava as linhas de
Niemeyer, de Brasília. Arquiteta? Não. Artista plástica.
Performática, escultora também. O curso de antropologia era porque
Lys gostava, queria saber mais sobre os terenas e outras tribos
indígenas do Alto Xingu, penso, ou talvez fizesse parte do próximo
trabalho. Como proposta estética, quero dizer. De todos os ângulos,
Lys era bonita. Lys, apenas Lys.
Voltando: bar
apinhado, gente saindo pelo ladrão. Em cada mesa, certa volúpia e
gestos comprometidos, luas de sorrisos. As conversas fluíam,
antecedendo as águas. Todos mostravam seu melhor lado.
– Por que não? –
perguntou Lys, a fase de conquista, talvez a melhor. Nesse estágio
ainda ninguém sofreu, a pele é lisa e não se sentiu seu verdadeiro
cheiro.
– Aliás, Ulisses,
tenho uma visão bem minority,
digamos assim, sobre isso. Quero dizer que o amor, como uma cebola,
tem várias fases ou camadas. E não sei se são as pessoas ou o
próprio amor que vai ficando menor, quanto mais íntimo, perto do
centro, do coração mesmo.
Emocionada, enquanto
falava, seus cabelos, finos rios castanhos, fluíam na luz.
Transtornados apenas, se ela jogasse a cabeça de lado. Como se
quisesse me ver ou ser vista por outro ângulo.
– Talvez não seja
novidade para você, disse ela, que o amor torna as pessoas pequenas,
o que elas são na verdade, camada a camada.
– Talvez o
contrário seja possível, disse eu, do centro para a periferia, no
caso da cebola, do coração para fora, no caso de gente.
– Continue, disse
ela.
– Será que, nesse
sentido, de dentro para fora, o amor não deixa as pessoas, em si,
maiores? – ponderei.
– Continue.
– Apenas isso: não
é mais fácil pensar assim?
– Exatamente,
replicou ela, mais fácil. E também mais fácil errar. Pois se é
como você diz, que o amor vai ficando maior, por que, depois de
algum tempo, para todos, o amor acaba?
– Pode não ser o
amor, disse eu. As pessoas é que ficam maiores.
– Inchadas, você
quer dizer.
Paciência,
senhores. Cito esta passagem, porque a metáfora da cebola é um tema
recorrente na vida e na obra de Lys F, que talvez ajude a traçar seu
perfil de mulher, artista e revolucionária.
Retrato: a boca,
gomos de laranja. Linhas, comissuras, curvas de promessas e tudo
nascia ali. Seu hálito perfumava as palavras mais vãs e prosaicas.
Era uma mulher livre, sem discursos prontos. Tocava sem partitura.
Qualquer assunto, para nós, tinha interesse, como se quiséssemos
pertencer logo um ao outro, conjuntos vazios. Nós, em círculos,
nossos copos desenhando outros círculos sobre o tampo de vidro da
mesa, nossos lábios se tocando: a teoria dos conjuntos, sim, na
prática.
Houve um beijo,
rápido. Ela, a liga. Para nós mesmos, naquele momento e para juntar
um par de histórias tão díspares. Possível em uma única noite?
– Até os nove
anos, eu sentia apenas culpa. Culpa e sonhos que não eram meus,
disse Lys F.
– Culpa?
– Desculpe. Não
estou preparada para falar sobre isso ainda. Eu acho.
– Diga: e os
sonhos, de que são feitos?
– Vou contar: eu
fazia balé, minha mãe que queria. Ela me achava linda naquela
roupinha. Eu, não. É normal, eu ainda garotinha, me sentir
ridícula? Para mim, sapatilhas rosa eram sapatinhos chineses de
tortura. Para conter os dedos. Como é que eu podia aguentar anos e
anos de treino para executar movimentos sem graça? Que músculos
teria de embrutecer para me tornar mais perfeita, mais feminina? Que
sonhos eu teria de sacrificar para fazer um pas
de deux?
Outro sonho que eu tinha, que não era meu, e que a mãe alimentava
dia a dia: a volta do pai. Eu me olhava no espelho e via o sonho de
mãe. E, não sendo meu, demorava a passar. Até que, um dia,
consegui gritar e acordei para o meu sonho. Viver a minha realidade.
Mas essa é outra história.
– Você devia
admirar muito a mãe para sonhar os sonhos dela? E suportar tanto
tempo – disse eu.
– Foi o modo de
descobrir o que sentia a mãe e as outras mulheres por extensão. E,
claro, a forma de me descobrir no mundo dos homens. O mais importante
disso tudo: daquele dia em diante, decidi que eu teria meus próprios
sonhos. O que nos outros é uma coisa natural, em mim, seria uma
conquista diária. Nunca mais fecharia os olhos para mim mesma. No
entanto, naquela época, eu mal poderia suspeitar que a culpa fosse
outro sangue. Tanto sangue, Ulisses, correndo em veias invisíveis.
Não foi fácil, a impressão que eu tinha era que estava para nascer
e não conseguia. Não conseguia nascer de novo, não bastava gritar.
Havia outro cordão umbilical que me ligava e nutria e, ao mesmo
tempo, envenenava – disse ela.
– É, acho que
tenho mesmo Complexo de Clarice.
– Que complexo?
Ler e também se apaixonar pela escritora?
– Não apenas,
mais. Ter me sentido como ela, disse Lys, e mais quando garota.
– Ainda não vi
aonde quer chegar – disse eu.
– Como escritor,
disse ela, talvez não seja estranho para você alguns dados
biográficos de Clarice. Que nasceu na Ucrânia. Que sua mãe já
estava doente, mas que, como era a crença na época, acreditava que
ficaria curada ao dar à luz. Que, como deve saber, isso não
aconteceu, prostrando a mãe na cama durante nove anos. Que originou,
na garota, um sentimento de culpa, porque sentia que falhara na
missão de ser sua cura.
– O que isso,
afinal, tem a ver com você?
Essa seria a
pergunta que poderia ter feito nesse momento, mas eu não fiz.
– Também penso
que matei a mãe. A minha mãe, Ulisses.
– E por que pensa
isso? – perguntei. Você também nasceu na Ucrânia?
Minha observação
em tom de blague fez efeito e Lys disparou um riso curto, logo
voltando à sua tardia autocomiseração.
– Não, não nasci
em seios de neve, disse ela, mas é como se tivesse sido um erro de
mulher. Erro de mulher, Ulisses. Muito tempo foi isso o que eu
pensei. Bebê ainda, com certa disfunção, precisava estar sempre
mamando e sempre num seio só. Aquele, o esquerdo, onde batia o
coração, até hoje parece, dentro da minha boca. Não adiantava a
mãe me virar, que eu rejeitava o outro seio. Pois bem, ao cabo de
três anos, adivinha onde a mãe teve câncer? Claro: no seio.
Esquerdo. Depois de extraído, ficou um asterisco no lugar, unindo a
pele numa grande e malfeita estrela. Um asterisco que era quase ou
nada mais que uma nota no rodapé da minha história. Tirei tudo da
mãe, pensava, sem saber que minha culpa poderia ficar ainda maior.
Cristalizada como leite. Transformado ele também em câncer, tempos
depois: a mãe ganhava outro corte e asterisco. Extraíram os seios,
meu Deus, mas não a minha culpa. Ela, à noite, era o que faltava. E
não adiantou a quimioterapia. A mãe perdeu os cabelos, o câncer
desceu então para o fígado. Em poucos dias, aconteceu o inefável:
o corpo da minha fé, também cremado, virou cinzas. Parei de falar
com Deus.
Nesse momento, uma
lágrima cortou seu rosto, tentando corromper sua convicção. Mas
ela caiu sem chamar atenção, como se não existisse, ou fosse uma
lágrima invisível ou, pior, insignificante, que não valia a pena
incomodar os dedos. Pude sentir então que Lys era uma mulher rara e
forte.
Contou que, nos
últimos dias, não arredou o pé da cama da mãe. Nutria a ideia
grega de que poderia regenerar seu fígado. Fixa e acorrentada.
Entretanto, aprendeu mais. Para ela, deixou de existir a alma como
então se concebia.
– É a mente e não
a alma que foge do corpo, fétida como fogo-fátuo, quando este está
para morrer. A mente, sentenciou Lys, não suporta a ideia de
fracasso. Por isso, ela sai e muda de roupa e de identidade: toma
corpo no que é inefável e voa, eterna. Isso o que ela intuiu nos
últimos segundos de vida da mãe. O coração ainda batia e a mente
já abandonava o corpo, Ulisses.
Retrato falado de um
pai invisível? Pelo menos, entre seus doze meses de idade, quando
ele saiu de casa abandonando mulher e filha, e seus dezoito anos
incompletos, quando ele reapareceu. Para logo ela desejar que ele
voltasse a ficar invisível. Quando? No dia do velório da mãe.
Justo nesse dia.
Invisível para sua
mãe, enquanto viva, que teve de lutar sozinha para criar e educar a
filha. Invisível para ela: o pai não estava ali, na extensão da
sua mão. Não estava quando ela precisou para se manter sobre a
bicicleta, ou para ter equilíbrio em outras fases da vida. Não
estava quando ela jogou o dente-de-leite para trás e fez seu pedido.
Ou quando contava e recontava as estrelas e sempre faltava uma. Não
estava também quando ela quebrou a perna e gritou de dor. Mas por
que o pai estaria lá, se apenas eram dores primárias? Primárias.
Não estava naquela noite, quando ela acordou de um sonho com o
próprio grito. E que tipo de dor era essa para uma menina, se não
havia cortado a pele?
Se foi um pai
invisível até seus dezoito anos, aconteceu também de ela, por seu
lado, querer ser invisível para ele por todo aquele tempo. De ser
invisível, à sua maneira. De nunca pronunciar seu nome para não
atrair a atenção de seus olhos onde quer que estivessem, nem de seu
espírito, porque até ele deveria ter um, por onde andasse. Nunca se
permitir olhar a foto sépia do pai, que existia numa pequena moldura
no jazigo de uma gaveta. Nunca aceitar o que viesse da parte dele. E
sempre desconfiar dos homens e dos seus atos.
Lys me relatou,
naquela noite que, ao olhar para o pai invisível, porque ausente,
conseguia ver melhor a situação da mulher. Esse foi o grande mérito
de não ter tido pai, disse ela. De todo modo, ele volta para casa e
participa do velório. Confessa que nada ganhou naquele dia, ao
contrário, perdeu: a pouca tranquilidade e a autoconfiança que
restara. De tão pálida, Lys chegou mesmo a desmaiar sobre os
arranjos e guirlandas. E, ainda, sem sentir, ser abraçada pela
primeira vez e sem jeito pelo pai invisível, também agora invisível
para seus olhos de dentro, embora estando ausente e que ali se
colocara a seu lado.
Disse Lys que nunca
deveria ter perdido os sentidos para ser abraçada e dever esse favor
ao canalha. Canalha. Foi assim mesmo que ela se expressou naquele
momento de ira, ao se referir ao pai. Ele, para sempre, deveria ficar
invisível. A raiva passou com o tempo, porém. Naquele dia e nos
seguintes, chorou o que tinha de chorar.
– Até ficar
desidratada, disse Lys.
Nas demais semanas,
apenas lágrimas burocráticas de algum momento. Um mês depois, pai
e filha marcaram um encontro. Setembro, quarta-feira. Tinha a função
de ser o maior evento emocional para os dois. Ele, aproveitar a
segunda chance que a filha oferecia, para deixar de ser invisível.
Lys também não perderia o momento para voltar a acreditar mais nos
homens e no pai, em especial.
Havia, então, a boa
vontade, de ambos os lados. E, claro, o inferno. Lugar, ao mesmo
tempo, da maior profundeza que os dois, pai e filha, se lançaram
para atingir maior altura. O primeiro encontro, rápido, teve lugar
no Ráscal, restaurante da moda, de escolha quase fortuita, mas o
cardápio dos temas foi ameno e variado. Os assuntos curtos, os
sorrisos úteis, o sentimento aos pedaços.
O pai, advogado
fodão, usava terno Armani e gravata de seda. Sóbrio demais para o
instante, porém, mais apropriado para a reunião que teria em
seguida, depois de trocar palavras e olhares com a filha. O almoço
teve a duração de um fast-food, embora servisse apenas para
apresentar melhor os dois e, por que não, alimentar sonhos de ambas
as partes.
O segundo encontro
aconteceu duas semanas depois, na casa de Lys. Quinta-feira, às
21h10. O pai, agora num casual chique, levou flores numa das mãos e
uma garrafa de vinho na outra, Dão, tinto, 1992. Ela vestia um
modelo velvet preto, cavado na frente com certa ousadia, mas sem
ferir o decoro da ocasião, generoso nas costas, mostrava boa parte
do outro tecido branco, de seda, sua pele perfeita. O vestido
insinuava mais do que pretendia revelar. Apenas uma garota desejando
se mostrar moderna e ser aceita pelo pai. Um corpo magro e perfeito
para os padrões da época ali estava, junto com a promessa. Que
continuava onde o vestido preto terminava e, pelos joelhos bem
torneados e trilhos das pernas, também se afinava nos sapatos pretos
de salto alto. E aí, ainda assim, onde o corpo terminava, a promessa
se estendia.
Fez cabelo,
maquiagem básica, lapisou as sobrancelhas, lábios cor de avelã.
Apertou um par de brincos e um colar de certa gema. Meia hora de
espelho, sua outra face, ao inverso. Estava preparada para o pai.
Ainda tão invisível como quando afasta o rosto e, de viés,
constata a falta de memória.
Duas horas para
preparar uma receita especial. Risoto de camarão, postas de salmão
grelhado, ramo de salsa, ilhado por molho de espinafre. Uma salada de
alface crespa com palmito picado, atum, hóstias de nabiças. Louça
portuguesa e talheres de algum designer italiano.
A garrafa de Dão
trazida pelo pai foi ter ao lado de outra, mais baixa e bojuda de um
Calamares de safra recente. Essa garrafa, ao lado de Sancho, era como
um Dom Quixote à frente de pai e filha, grandes moinhos, reais, de
braços que circulavam para se servir.
Lys contou que,
naquela ocasião, de modo algum premeditava fazer perguntas ou
indispor o pai com indiretas. Exporia seu melhor lado, solidário e
confiante, sem autocomiseração, enfim, transmitir a imagem de uma
garota crescida e resolvida, ainda que sem a ajuda paterna e pronta
para seguir adiante, mesmo agora sem a presença da mãe. Mas não
foi isso o que aconteceu.
Fez arranjos e
ajustes e, minutos antes de o pai chegar, acendeu velas, então olhos
de luz, amendoados como gueixas, num aparador de canto. Luz bastante,
ela refletiu, para esse encontro às escuras. Os anteriores, quase
fortuitos, não acrescentaram muitas peças a este mosaico de
sentimentos e cacos. Por dentro do vestido, a pele, à véspera do
instante, umedecia a fina seda. E, por dentro da pele, ela se
convergia, quem de fato habitava o seu corpo. Por isso, ela se
concentrava em algum quadro de Degas ou Van Gogh, num enorme esforço
de autocontrole. A exemplo de outra genética animal e, por conta da
ansiedade, Lys me confessou que, até o pai chegar,
involuntariamente, urinara vezes seguidas em calcinhas trocadas.
Era esse, então, o
quadro, disse Lys. A garotinha tinha crescido, era bela agora,
beirando em poucos dias, o status de mulher e, por conta de tudo que
foi doído e invisível, queria sentir ser aceita por quem um dia a
havia abandonado. Não era mais a fase de peito e dente-de-leite, ele
tinha de querê-la de volta por quem ela era, ou fazia conta de ser.
– Estava pronta,
pensei, para ter o coração que batia fora de mim, embora algo me
dissesse para estar preparada para uma possível desilusão. Aliás,
como eu sou a própria Lady Murphy, disse Lys, rindo de si mesma, a
desilusão parecia inevitável. Como, na verdade, foi, Ulisses.
Poderia continuar essa história só para mim, porque só a mim ela
diz respeito, mas ela me fez crescer demais esses anos. Foi meu
fermento de mulher e não pode ficar restrita a mim.
De minha parte,
vendo os fatos também a certa distância, penso que aquele encontro,
logo desencontro, foi determinante na formação do seu caráter, ao
mesmo tempo firme e sedimentado, para a causa de todas as mulheres.
Para mim, na melhor das hipóteses, as emoções dessa noite foram
controvertidas e, na pior delas, óleo de cobra.
Também para Lys foi
um começo difícil, pânico, de outro jeito de se fazer entender,
usando afinal palavras. Palavras como armas brancas, guardadas sem
uso por muito tempo na infância e por toda a adolescência e, nesse
jantar, saindo da bainha, e cortando. Mesa de jantar, louça de
família. Talheres: piores punhais.
– E a parte do
diário, pode pular?
Então: até aquela
fatídica data, Lys tinha sido diferente em tudo, até na forma de
expressar seus sentimentos. Tímida e introspectiva, pouco se
comunicava por palavras. Usava mais mímicas ou gestos. O silêncio
para ela dizia o suficiente. Seu diário íntimo era mais do que um
exemplo. Seu diário, estranho diário, não era de palavras, mas de
figuras. Nos primeiros anos, feitos a lápis de cor.
– Como toda a
infância deveria ser, disse ela.
Adolescente depois,
os temas visuais já eram à esferográfica, a bico de pena, lápis
de cera, aquarela, nanquim, guache, tinta acrílica e o que fosse
mais apropriado para escrever, ou melhor ilustrar o que ela estava
passando.
– Tive sete
diários até hoje, disse ela, de um jeito meio convencido, cada
página um motivo, na parte superior, apenas o dia, o mês e o ano.
E, ainda nesse caso, não eram palavras, mas outro alfabeto. Os dias
eram representados por luas, estrelas, raios ou arco-íris. Os meses
por begônias, dálias, brincos-de-princesa, lírios,
vitórias-régias, bocas de leão, lilases, et ceteras. Os anos eram
sóis, novas e anéis de Saturno. Nenhuma palavra. Nem como legenda.
Quando ela me contou
sobre a existência desse inusitado diário, lembro que fiquei
emocionado. Até o último cílio. Confessei, então, que, se não a
tivesse encontrado primeiro, o personagem do meu livro, por certo,
teria se apaixonado antes por ela. Lys fez um ar interrogativo e eu
continuei. Porque vocês pensam o mundo, senão com a mesma dialética
e ideologia, pelo menos com os mesmos olhos. Cor, forma, arquitetura
de luz. Lys se mostrou ainda mais curiosa e, eu, afagando sua cabeça,
contei então em tom de mito e fábula, a história que eu tinha
escrito.
– Querem mesmo que
eu leia?
Li. Num estranho
país, a poucos anos daqui, um pintor assume o poder e inaugura uma
nova ordem: as placas das ruas são pintadas com flores e bichos. O
papel-moeda perdia os zeros e os outros números, e começaram a
circular notas de Van Gogh, Picasso, Degas, Dalí e Delacroix. Os RGs
agora eram hologramas. Nos bancos, senhas visuais. Em vez de nomes e
datas nos jazigos, desenhos. Nos livros, histórias quadro a quadro.
Nos jornais, foto notícias. Nas TVs, apenas cores, formas, bichos,
paisagens, rostos, sorrisos. Nas rádios, Wagner, Bach, Beethoven,
Mozart, ou músicas ligeiras, sem letras. Os letreiros de ônibus:
estrelas, raios ou arco-íris. As placas dos carros: signos. Nos
outdoors, naturezas-mortas, ou então, da Coca-Cola apenas as ondas
e, do Marlboro, só a bandeirola do Leo Burnett. Nas telas, o cinema
mudo. Na vida real, a exterminação de papagaios: espécie nociva,
segundo a nova National
Geographic.
Na Bíblia, as novíssimas ilustrações. Nas igrejas, o Cristo
crucificado sem o copyright © Inri. E, em vez de máquinas de
escrever, máquinas de desenhar, com teclas de lua, sol, ondas,
nuvens, raios, sorrisos, olhos, cruzes, estrelas, et cetera.
– Como termina a
história?
– As máquinas de
escrever foram parar no Cemitério das Palavras. Os livros antigos,
recolhidos e reciclados em rolos de papel-higiênico. O mal da fala,
combatido, por lavagens cerebrais e campanhas de vacinação. E até
o alfabeto Braille, o pintor tirou de letra – finalizei.
– Como termina a
história?
– Não termina,
respondi. O pintor ainda governa esse utópico país.
– ?
– Ele espera a sua
vez de ser correspondido pela mulher que, dia a dia, descreve um país
em seu diário, em forma de desenho, disse eu sorrindo.
– Em forma de
coração, corrigiu Lys.
Essa dupla
digressão, com os senhores e sobre o pai de Lys, serve para ilustrar
que ela sempre pôde superar a ficção, tão mais interessante
quanto inefável. E propriamente essa palavra, inefável, poderia
servir. Na conversa com o pai, a filha sempre respondia com os olhos,
palavras curtas, uns sins sempre borrados por guardanapos. Batom cor
de avelã, manchas verdes do espinafre, promíscuas.
Quase muda e ideal:
deixava o pai falar. E ele falava muito, sem parar. Sempre bem
articulado, claro, quase cansativo.
– Pensei que,
agindo assim, disse Lys, eu pudesse disfarçar conflitos mais sérios
entre pai e filha, entre ele e eu. A certa altura, pensei que tinha
sido uma ideia apressada, convulsiva, insana mesmo, de ter convidado
o pai invisível há tanto tempo para posar como familiar. E ele, ao
mesmo tempo em que se empanturrava de comida, mais intumescia sua
boca com palavras. Bufão.
– Bom esse
Calamares, disse ele, emborcando a taça, depois de ter sentido o
bouquet, visto a safra e citado a vinícola.
– Aham –
assentiu Lys.
– Sabe como o
fabricante desse raro vinho consegue a agulha?
– Agulha?
– É, esse ponto
ácido que se sente no palato. Sabe como se consegue?
– Não.
– Simples: eles
acrescentam carne de carneiro para fermentar junto com as uvas.
– Simples?
– Sabe como eu
sei? Seu avô, ainda em Portugal, me transmitiu esse segredo
industrial, como se fosse um bem de família. Pode ficar orgulhosa
desse homem, filha, quando eu tinha lá meus oito anos, eu mesmo o vi
pisando as uvas com os pés descalços para dar origem a um vinho
maduro, fino, caseiro. Foi seu avô que cunhou a frase: “De vinho e
mulheres, sou um connaisseur”.
– Sim.
– Mas não é só
o vinho que está ótimo. O risoto, o molho de espinafre, sem contar
o próprio salmão. Puxa, nem posso acreditar no que estava perdendo
há tantos anos – disse ele.
– Não, pai, eu é
que estava perdendo, disse eu, sem saber se tinha sido ambígua. A
sua companhia, pai... É disso que estou falando e o que eu estava
perdendo.
–
– Deve valer mais
do que essas receitas de mãe para filha, não? Perguntei eu, sem
assumir, contudo, uma posição reativa, revanchista ou acusatória.
O pai, raposa data
venia,
sentindo o ar grave, antes mesmo de ser nominalmente citado, o que,
de fato, aconteceria cedo ou tarde naquela noite, foi logo tratando
de advogar em causa própria.
– Sabe, filha,
teria sido uma fraude eu não ter partido naquele dia, disse ele. Se
houvesse amor, eu teria resistido à falta de um seio.
– Se houvesse
amor...?
– Você não teria
me perdoado depois, se, naquele dia, eu tivesse ficado.
– E quem disse que
perdoei você antes?
– Seria infeliz,
como tantos pais, continuou ele, que nunca ousaram e, por isso,
anularam a vida dos filhos. Deus é prova de que tentei.
– Deus? Ele também
não é invisível?
– Não poderia
sacrificar a minha vida, filha, disse ele, entornando mais um copo de
vinho tinto goela abaixo. Depois, sabia que você não passaria
dificuldades: tua mãe, mesmo incompleta, era uma mulher forte.
Forte, filha, porque a dúvida divide, enfraquece. E, eu, na época,
era o próprio fragmento.
–
– E tinha a tia
Siena, que, se não usava calças, poderia desempenhar outro papel,
próximo e à altura. Completou ele, com aquela boca gorda cheia de
dentes.
– Não era bem
assim, pai. No começo, passamos dificuldades. A mãe comeu o pão
que o diabo amassou. E eu, disse Lys, o leite mais amargo possível.
– Para ninguém é
fácil, sei que não é, disse ele, com o copo de vinho entre os
dedos. – Fui honesto comigo mesmo e também com a sua mãe: quando
descobri o fim do sentimento, ela foi a primeira a saber.
– E comigo, quem
foi honesto?
– Olhe, filha, fiz
a mala com as minhas coisas naquela hora mesmo, peguei um táxi e fui
passar a noite num motel barato.
– No dia seguinte,
não sentiu falta de nada?
– O quê? –
questionou o pai, segurando o copo de vinho contra a barriga com as
duas mãos.
– A culpa, pai.
Não vi ninguém guardar a culpa na mala. Não estava entre as
cuecas? Esqueceu comigo?
– Ah, então,
minha filha, vire promotora e me acuse, disse ele. Mas que culpa e,
como pode saber, se você era um pingo de gente?
– Por isso eu sei,
pai: a culpa da mãe. Por ela ter extraído o seio esquerdo.
– Como pode?
– Ora, pai: a
culpa foi crescendo comigo, óbvio, mamava só no seio esquerdo. O
seio extraído. No direito, dizia a mãe, eu não me acostumava:
leite ruim, logo não demorou a empedrar e secar. Concluindo, pai:
para mim, uma mãe incompleta. Para você, uma mulher. Incompleta.
– Tudo obra do
acaso, filha. Se, para você, não tinha mais leite, para mim, algo
também faltava – disse ele, empurrando as últimas palavras com
mais vinho.
– Vamos mudar de
assunto. Não quero que pense que, além de culpa, há problemas e
outras dívidas a acertar. Depois, hoje é uma visita.
– Não seja por
isso, filha. Se faz bem a você, continue.
– Sei lá como
tive coragem de falar tudo aquilo, Ulisses. Tinha que ver: fruía,
pelos meus braços, uma espécie de febre e um tremor. Depois de
tantos anos, falava de igual para igual com meu pai, que, naquela
noite, deixara de ser invisível, para ganhar alguns contornos.
– Continue,
continue – disse ele.
– Sobremesa?
– Aceito, disse
ele, colocando os dedos na minha mão, como num mouse. – Mas depois
de você falar tudo o que tem para me dizer. Não perca essa chance,
eu estou aqui, sou seu pai e quero ouvir tudo. Tudo.
Voz embargada pela
emoção. Ou pelo vinho. Não me deixava enganar. Seus olhos
procuravam os meus, mas eu ainda me sentia frágil, Ulisses. Não
tinha certeza da minha força. Deixei cair os olhos sobre o
cristalino verde da gelatina. Como levantar os olhos? Enquanto isso,
o pai falastrão clicava o dedo indicador na minha mão em punho
sobre a toalha da mesa.
Depois, Ulisses,
tudo começou. Ele se levantou da mesa e veio ao meu encontro:
colocou as mãos sobre os meus braços e, ainda sentada, me abraçou
por trás. Tentei ficar fria e indiferente: não adiantou, ele descia
e subia as mãos pelos meus braços. Ensaiei levantar e me livrar de
suas mãos e foi pior: fiquei totalmente imobilizada entre seus
braços. Nesse instante, chorei, copiosamente. Como nunca antes. O
pai também se emocionou, ajudado pela bebida.
– Não chore,
filha. Não chore.
Aos soluços, fui
parando. Minhas lágrimas desenharam na sua camisa a minha máscara,
que me encarava e incriminava. De todo modo, nos desgarramos e fomos
para o living, onde ficamos, um em cada sofá, formando um ângulo
entre nós. E foi por aí, Ulisses, que ele citou o seu nome. Não é
nada disso, você vai entender. É como voltar para Ítaca, como
Ulisses. Eu fiz silêncio, pensando que ele fosse entrar no blablablá
e usar a metáfora da volta, mas não foi isso o que aconteceu.
Ele emudeceu e eu
disse:
– Pai, quando saiu
de casa, foi para não voltar mais. Por que não diz isso logo?
Idiota a mãe que ficou esperando por todo esse tempo.
– Filha, você
precisa tentar entender: aí existia amor. Ainda que paradoxal e mais
em sua mãe.
– Que destino
sobrou para ela? – retrucou Lys. Sem seio, sem autoestima, que
outro homem frequentaria sua vida e seu corpo, incompleto?
– E por que teria
de ser eu?
– Por
fidelidade...
– Eu voltei, não?
– Por outro
motivo. Foi porque ela extraiu o seio, que você partiu, não foi?
Foi o câncer? Não precisa responder, se não quiser.
– Acredite: antes
do seio, o câncer tinha comido a relação. Não julgue seu pai
assim: venda nos olhos, esse sentimento equivocado, de viés.
– De viés, sim.
Equivocado, nunca.
– Não posso
concordar com você.
– Não concorde,
então.
– Sem querer mudar
de assunto, o vinho acabou – disse ele.
Levantou-se e levou
o copo vazio até a mesa e foi pegar uma garrafa de bourbon.
– Quer gelo?
– Gosto cowboy.
Houve então a
mistura de bebidas, emoções e conversas a partir daquele momento.
Lys me confessou que aquela noite foi a mais doída e estressante de
sua vida, porém, necessária. Exorcizar o pai, o demônio mais
difícil.
– Compreenda:
minha decisão não tinha a ver com você. Se, naquele dia, não
mostrasse coragem, sentiria ódio de mim mesmo para o resto dos meus
dias.
– Não, não foi
você quem sentiu ódio de si mesmo...
– Não precisa
entrar em detalhes, eu entendi.
– Será?
– Para isso, ser
advogado ajuda.
– Talvez, por isso
queira ganhar sempre...
– E essa não é a
causa humana?
– Não, trata-se
no caso, da própria filha. Pare, portanto, de advogar em causa
própria.
Breve pausa.
Silêncio de ambas as partes, tácito. Aproveitei para fechar os
olhos. Preferia, às vezes, os silêncios à profusão de palavras.
Não sabia se queria ou não ter pai. Dependia de mim, Ulisses. Não
sei se deveria dar outra chance ao homem que marcara tanto as nossas
vidas. Fora que minha economia emocional estava deficitária, em
descalabro mesmo. Trocaria a falta da mãe pela aceitação do pai?
Minhas emoções por outras? E tudo o que tia Siena me revelara sobre
aquele homem? Naquele momento de trocas simbólicas e economia de
outro mercado, pretendi então a mais-valia. Queria o resgate do
amor-próprio e, paradoxalmente, o amor caminhava em outra direção.
Enquanto ele tomava
mais uma dose de bourbon, eu experimentava uma ou outra lágrima.
Essa bebida destilada em segundos e, contudo, adormecida nos últimos
dezoito anos. Não havia uma única célula do meu corpo que contasse
outra história. Por outro lado, Ulisses, eu ainda me sentia toda
tímida no jeito de ocupar meu corpo. Minhas mãos terminavam em til
sobre as pernas, juntas e trêmulas. Havia um quê de possível abalo
sísmico partindo do coração e que se espalhava pelo corpo todo. A
mulher há tantos anos inativa estava afinal à beira do colapso?
Intuía lava e a certeza de não fugir mais de mim mesma. Dessa nova
fase de autoconhecimento. Saber que, de um jeito ou outro, tudo que
iria acontecer me fragilizava ainda mais, por antecipação.
Súbito, o pai
sentou no seu antigo lugar no sofá, fazendo ângulo com os meus
joelhos. Seus dedos lambiam, furtivos, os meus cabelos. Depois de
breve indecisão, estendeu o braço sobre sua perna e segurou as
pontas dos meus dedos. Puxei a mão e tornei a precipitar meus olhos
sobre o tapete da sala. Ele falou e não consegui mais ouvir o meu
silêncio.
– Chega de
sentimentos oblíquos, disse ele. Estou aqui agora.
– Sentimentos
diretos, então: eu sofria, sim, com a sua ausência, pai. Pesadelos,
ataques de asma, lágrimas. Era isso o que queria ouvir? –
perguntei eu, levantando e tornando a deixar cair os olhos em algum
ponto do chão.
– Queira
desculpar, disse ele, mas minha sobrevivência dependia de um ato de
amor ao contrário. Foi o que eu fiz.
– Isso o que eu
ouvi, Ulisses. Parece que um sentimento ao contrário, para ele,
explica tudo. As pessoas vomitam isso como algo que caiu mal,
estragado.
– E você, como
reagiu? – perguntei, afinal.
– Eu disse a ele
que, em minha opinião, não seria nunca um ato de amor, mas de
crueldade.
– Ato de
crueldade, pai.
– Então, eu
insisto, filha: um ato de bondade ao avesso. Pode ser?
– Não sei, pai.
Tento entender, mas não consigo.
– Ainda bem que
você não consegue, filha. Porque entender é limitado.
Limitado, isso o que
ele falou. O filho da puta. O que me deu nos nervos, ou antes ia
completando até a borda o cálice de ira, Ulisses, é que ele
manipulava as palavras como queria. Ele era bom nisso. Pior é que,
no momento seguinte, procurei ferir aquele homem, mas caí no ardil
das palavras.
– Não sei, se,
depois de todos esses anos, você tenha o direito de estar aqui.
– Quem mais?
Perguntou ele,
tornando a segurar minha mão.
– Não tive pai,
nem colo. Quando mais precisei...
Tempo.
– Não deveria ter
falado assim, Ulisses, mas aquelas palavras escaparam ingênuas da
minha boca e ele aproveitou para tentar me conquistar.
– O que aconteceu?
– perguntei
– Não pense que é
fácil.
– Sei que não.
Depois de uma
pequena pausa, Lys pincelou a outra face do pai, falando com as mãos.
– Você tem pai
quando mais precisa – disse ele, me puxando para o colo.
Pronto, pensei, eu
caí na armadilha: as pernas se fechavam. De repente, senti um abalo
sísmico, forte, por todo o corpo e, aos soluços, fui me vertendo em
lágrimas. Na verdade, ele também não estava preparado para me ver
tendo uma emoção tão forte. Tentava me acalmar como podia. Abraço,
arcaico, forte.
– Essa é a parte
que o pai confunde tudo. Pode pular?
Pois bem: o que mais
incomodava Lys era ter ficado naquela posição e, ao mesmo tempo,
enxergar como outra pessoa, sendo vista por si mesma de fora.
– O que eu via?
Via mais do que uma garota fragilizada e precária. Mais do que uma
filha mal resolvida nos braços e no colo do pai. Eu via, Ulisses, a
eterna cena de ventríloquo com seu boneco no colo: via a mulher
sendo, de novo, dublada pelo pai. Porque na horda ou em qualquer
outro lugar, sempre alguém nos dublou, padrasto, irmão, marido, o
poder do macho. E eu não poderia estar enganada, porque era o que eu
sentia. Imóvel, no colo do pai, como uma garotinha. Nessa hora, eu
não me ouvia, tanta algaravia de vozes. Entanto, via o quanto o
imobilismo era perigoso. E eu me deixava ali, na ilusão de menina e
no colo do pai.
Não era para menos.
Também sentia seu coração forte, policial, bater nas minhas
costas. Seu peito chiava. Tremia toda, sentada nas suas pernas, a
ponta do sapato alto tamborilava como um código no assoalho. Colo,
cavalo que me afastava onde eu me dividia em lábios, nádegas e
pretexto. De todo modo, o coração era motor, amortecendo cada fibra
do meu corpo.
Eu estava ali, mas
não estava. Faz algum sentido para você? Eu me via num sonho, em
que tinha que acordar rápido. Porque era meu pai e também não era.
Inclusive, no sonho, seu rosto era invisível. Queria falar, mas só
mexia os lábios. A voz que eu ouvia não era a minha, era do pai,
que continuava a me dublar. Verti uma ou outra lágrima e ele me
enxugava, primeiro com as almofadas dos dedos e, depois, com as
almofadas dos lábios, o meu rosto. Suas mãos nas minhas, como
louva-a-deus em núpcias. Mãos que não paravam, sempre em
atividade, trajeto de suspeito carinho.
Quando, de fato,
suspeitei que seus dedos vasculhavam os desejos mais insuspeitos e
torpes, tentei impedir, mas estava imobilizada. Eram mãos ou os fios
do sono, questionei. Tentei gritar: a mordaça inefável dos sonhos.
Ainda a voz do pai. Procurei eu mesma ler meus lábios e não
conseguia traduzir toda a minha confusão. Eu me via na posição de
toda mulher, sempre em consentido sacrifício. Não é preciso que a
amarrem, ela já se desnuda e se oferece em holocausto: faz parte de
sua natureza ou de lenta estratégia?
Sentia, Ulisses, as
mãos pousarem, às vezes, na minha cintura, como que equilibrando na
perna e no cavalo daquela emoção. Outro corpo sentia o meu. Minhas
mãos semicaídas no vão do meu vestido entre minhas pernas. Elas
queriam se mover, mas eram dissuadidas por outras mãos. Pensei:
aranhas de mãos que, primeiro, conquistaram minha mãe e agora eram
como algemas em meus pulsos. Sentia que seus desejos levavam a melhor
sobre o aspecto de eu ser sua filha. E que tudo isso fazia parte de
um jogo sutil. Ele me queria onde eu estava, sua garotinha, que ele
podia manobrar e dar voz. Não digo que eu não me prestasse ao
papel, Ulisses, se eu não continuei assim foi porque ele traiu minha
confiança. Pode parecer pouco, mas foi muito. Foi tudo.
Momento justo que me
preparava para a entrega e ter o pai de volta, foi que tudo
aconteceu. Senti mais abalos: soluços que desciam do peito e
reverberavam no osso ilíaco. Por conta de outra temperatura, minhas
coxas tremeluziam de febre. Pernas quentes e suadas do meu pai. Minha
mão se desprendeu da outra e, roçando o tecido da sua calça, foi
encontrar a fonte de todo o evento. Aí, sim, Ulisses, o princípio
do fim. O halo da tragédia, a decepção permanente.
Minha mão tateou
disfarçadamente um pouco mais, buscando a certeza: sim, era o sexo
quente e viril sob o vestido, pronto e desavergonhado do homem que
tinha selado o destino da minha mãe. Por momentos, tudo girou na
minha cabeça, a revelação doía. Não podia evitar imaginar o que
poderia também acontecer comigo, a fama do pai com as mulheres já o
precedia. Não que a mãe uma única vez desse com a língua nos
dentes. Ao contrário: túmida língua sempre para me poupar. Era,
contudo, a língua viperina da tia Siena que agora mexia em meu
subconsciente e me colocava, refém, no lugar da mãe: sentia
impotência e nojo, então. Aquele homem me abrindo as pernas à
força e me ungindo para o sacrifício. Mordia a minha pele mais rosa
e sensível, me fazendo gritar. Depois me apunhalou diversas vezes,
até desabar como árvore sobre meu corpo. Um homem que adorava
quando, igual à mãe, resistia: ele me socava os seios e eu
desmaiava, acordava e mais um tapa na boca, deixando meus lábios
carnudos de inchados, onde ele colava os seus, sugando o sangue
represado. E quando eu imaginava que o evento me acabara, por ter
orgasmado e me sujado toda, ele recomeçava pelo meu avesso: me pôs
de bruços para salivar e comer meu rabo. Tinha sido assim com a mãe,
sina igual para a filha. Por que seria diferente da história que a
tia Siena havia me contado?
– Por que você
não iria acreditar, Ulisses? Olhe à sua volta: vivemos numa
sociedade do assédio. Desde menina, depois pelo chefe ou calhorda
qualquer de poder igual. Um assobia aqui, outro só consegue ver lá
um pedaço de carne. Mulher, isso, um pedaço de carne. Eu mesma,
Ulisses: na igreja onde a mãe me levou para o catecismo, o padre
passava a mão nos meus peitinhos. Era só ela dar as costas. Nunca
falei, mas não voltei mais. Aquele padre me assustava: sua bondade
gasta me enojava.
Então, Ulisses,
naquele momento do sonho, eu me via no lugar da mãe, jogada na cama,
sendo mais uma vez massacrada por quem deveria me amar e proteger. Vá
vendo, Ulisses, tudo isso era um evento na minha cabeça, insanidade
mesmo, mas que poderia acontecer naquele momento. Ainda que o aspecto
moral talvez fosse a definitiva barreira para um pai se deter. De
todo modo, acordei. Revoltada. O cara perdeu a noção. E, me
enchendo de coragem, peguei firme aquele volume teso sob a calça.
Levantei num
sobressalto. E ainda agarrando seu sexo na mão e na unha, soltei a
língua. Verdadeira retaliação. Ele teria que me ouvir. Pela
primeira vez, dominava a situação e não desejava perder a
oportunidade. Castração simbólica, condição primeira para deixar
o pai impotente e não ser violentada.
– O que é isso,
pai?
–
– Tá excitado?
Quer me comer?
–
– Pensou na mãe?
Mas eu não sou ela. Sou sangue do seu sangue. Por que então outro
sangue branco sobe no termômetro? Por quê, pai?
Eu gritava muito,
Ulisses. Minha boca era uma catapulta de palavras, saliva e cólera.
Vociferava. Olhei para aquele sujeito, que nem considerava pai, e
podia ver que ele suava. O canalha estava aterrorizado. Mudo. De
tanto procurar viés, estava agora na posição de réu. Cadê o
advogado fodão? Provar sua inocência, de que jeito? No colo do
acaso, ele agora. Ele mexia os lábios, mudos: eu é que falava sem
parar.
De jeito nenhum,
Ulisses. Estava ali para levar aquilo até o fim. Retaliar o crápula.
Mais que eu, ele sabia que tinha atravessado a linha moral. Estava
agora sob o domínio da culpa. Situação óbvia, pânica. Não tive
dó. Eu era a personagem de mim mesma: teria que ser cruel para
resgatar o meu amor-próprio.
Larguei o seu sexo
nojento e dei um pulo para trás. Comecei a suspender o vestido,
mostrando as coxas. Arranquei a calcinha e joguei-a na sua direção
dele. Abri as pernas e apontei o sexo com a seta esmaltada da unha.
– Era o que você
queria? Então, venha. Venha comer a boceta da filha. Por que não
vem? Ainda sou cabaço. A mãe também era, não? A primeira vez sai
sangue, pai, depois a gente acostuma com a dor e com os homens. Por
que não vem me arruinar? Venha espremer essa carne no meu corte.
Quer chupar antes? Jogar esperma na minha boca? Pode vir. Por que não
é macho com a própria filha? Abrindo mais as pernas, sim. Obscena.
Padrão de folha
caindo? Árvore desabando. Agora quem aterrava os olhos no chão era
ele, Ulisses. Constrangido, incomodado de estar ali, colocava a mão
e a persiana de dedos nos olhos. Estava mal, no bico do corvo. Eu,
exterminadora. Agora mostrava meu traseiro.
– Ou quer o meu
cu?
–
– Quer enfiar esse
cacete sujo no meu ânus cor-de-rosa? Bem que a tia Siena contou que
você é doente por bunda. Não é essa a posição que a mãe ficava
quando estava grávida?
–
– Grávida de mim,
pai. De mim.
–
– Vai dizer que
não?
Perdi a classe,
Ulisses. Para mim, todo esse veneno agiu no sentido de cura: cuspir
tudo para fora e me acalmar. Para ele, ao contrário, recebia a
picada. O esperma para dentro. Veneno ao contrário, que ele nunca
experimentara.
Tudo aquilo tinha
sido a soma de erros e equívocos. Ele estava afinal abatido,
derrocado. Louco para dar o fora dali. Tinha sofrido um enfarte
moral. Estava um trapo. Ajeitou a calça, pegou o costume risca de
giz e sinalizou, mudo, que iria se retirar, caminhando em direção à
porta. Foi aí, Ulisses, que me ocorreu uma ideia, cruel, admito e,
mais que depressa, corri em direção à porta e tirei a chave.
Enquanto ele parava, surpreso e sem ação, eu girava a chave antiga
e colonial na mão. Fui sentar de volta no sofá.
Cansado de esperar
ao pé da porta trancada, o filho da puta fez mais uma pausa. Quando
veio na minha direção, puxei o vestido até à cintura, abri as
pernas e, nefária, afastei os pelos púbicos, introduzindo a chave
nos grandes lábios, como uma fechadura. E esperei.
– Não acredito
que você fez isso – disse eu, surpreso e hilário.
– Pois acredite.
– E aí?
– Aí é que em
casa ele não ficou, disse Lys rindo. Tinha que ver a cara dele,
Ulisses. Um canalha, agora temeroso, tremendo os dedos. Tentou evitar
meus olhos, não conseguiu. Eu queria abrir no seu corpo um corte
fundo, quanto o sexo de mulher, cova, corte que nunca se fecharia
para sempre em sua memória. Também, sem dizer palavra e cheio de
dedos, retirou a chave de mim e logo abriu a porta para se perder nas
escadas. Sem também dizer palavra, atirei o sapato de salto alto
atrás daquele homem, degraus abaixo...
–
– E nunca mais o
vi mais gordo...
Jogo de amarelinha:
Lys saltava de um assunto para o outro. Eu estendia a mão sobre a
mesa para pegar a dela, mesmo que apenas por alguns momentos, mesmo
que só um dedo tocasse a sua pele. Telegrama dos dedos, mensagem
tácita recebida: Lys respondia com o brilho dos olhos, mas eram as
suas palavras que buscavam outras ou meias palavras, para se juntarem
na mesa, em outro tipo de dominó de emoções. Nós éramos, cada
um, de seu lado, duas peças que representavam esse dominó, sempre
buscando afinidades eletivas de um assunto a outro. O outro lado
terno: ela correspondia ao meu olhar e gestos, devolvendo o mesmo
carinho. Na sua outra metade: face lisa e silêncio. Também ouço o
nada, mas essa é apenas a minha metade, porque a outra são
reticências...
– Se eu viajasse
amanhã, disse Lys, você iria querer me conhecer hoje?
– Iria.
Nossos rostos,
então, duas pedras de dominó: um ao lado do outro, não sei por
quanto tempo. Houve o beijo e ponto. Não conseguimos mais nos
desgrudar. Enquanto eu fechava os olhos, tentando me concentrar no
seu doce batom e saliva, Lys era totalmente ao contrário: ela não
fechava os olhos, ou antes, os abria mais, concentrando mais força
nos lábios, úmidos e túmidos na sucção. Ela me comia com os
olhos ipsis litteris.
Saímos do bar com
mais fome um do outro. Nus, nos engolimos dentro do carro, totalmente
embaçado pelo hálito de todas as nossas células. Depois o sexo
subiu o elevador. Lys abriu a porta do apartamento e, na sala, outro
beijo e o mesmo jogo. Pedra contra pedra, corpo contra corpo: faísca.
– Pode pular essa
parte?
Mãos em núpcias,
mas o corpo reagia com velocidade e certa violência. Lys gritava e
me incentivava até o último músculo. Mesmo quando a carne espuma
na outra seda, o amor não termina. Não terminava. Para nossa
surpresa, a química continuava a reagir enquanto houvesse uma
simples gota em cada célula. A dor no corpo servia só para nos
levar adiante. Depois de horas, nossos corpos ainda perdiam água,
mais leves, porém, em movimentos exatos. Um balé em cada gesto,
como se sempre tivéssemos ensaiado o amor juntos.
Corpos giram,
elásticos chineses. Quando o corpo reconhece o amor, acontece a
pequena morte. Nem pensamento ressuscita. Nossos corpos suados se
colaram para dar uma chance aos sonhos.
Olhos para dentro,
não me lembro do que vi. No entanto, ao abrir os olhos vi que estava
dentro de outros olhos. E pálpebras, retinas, íris e pupilas. Lys
estava debruçada e olhando fixamente para mim. Achei estranho. Era a
primeira vez que despertava não para ver, mas para ser visto. Óbvio
que foi um susto daqueles. Estremunhei braços e pernas, num ímpeto.
Lys, porém, mais ligeira: seu corpo nu e quente ficou sobre o meu.
– Desculpe, amor.
Desculpe. Não pretendia te assustar, apenas que eu fosse a primeira
coisa que você visse ao abrir os olhos.
Refeito do susto, o
corpo tresmalhado voltou para se unir ao outro corpo e ter um pouco
mais do mesmo. Sol a pino: mais uma metáfora para o que ainda
acontecia naquela cama. A química dos nossos corpos era a mesma da
noite anterior. Intensa como a fome. A fome voraz como ela. E ela
como eu. Febre que resistiu ao hálito íntimo da tarde, e só
paramos quando nossos corpos explodiram pela última vez. Quando o
sangue voltou, zunindo, ao cérebro, é que houve, em mim,
reintegração e posse. Dor aliviada, o corpo reconhecia seu limite.
Levantei, as pernas
tremiam. Outra batalha, mas eu precisava tomar água e,
necessariamente, ficar livre de outros líquidos. Outro susto: todos
os quadros nas paredes da sala cobertos com panos lilases, como nave
de igreja na Semana Santa com os santos velados. Os sofás e outros
móveis também cobertos, nesse caso lençóis brancos, criando
volumes e esperas. Nesse curto trajeto até ao lavabo, compreendi
tudo: o amor que mal começara já estava com os minutos contados. Os
panos hibernariam os ursos brancos nessa sala, a casa daria um tempo.
Decerto, Lys partiria. Direito de impor condições? O que nasceu há
poucas horas teria essa força? Decido que não tocaria no assunto,
sem deixar de reconhecer a minha falta de sorte. Olho para o meu
sexo: inchado e cor-de-rosa.
No caminho de volta
para o quarto, ergui os panos como se levantasse as saias roxas à
altura dos meus olhos. Pude observar, num misto de luz e sombra, os
quadros dessa não exposição. As telas, sem dúvida,
surpreendentes, pelo que pude perceber, na técnica e conceito. Não
havia uma escola que definisse ou delimitasse o trabalho do artista,
mas o encontro feliz do que cada uma tinha de melhor, para expressar
a ideia. E que ideia era essa em cada quadro?
Numa rápida
impressão, curto espaço de tempo clandestino que procurei não
exceder, notei que as seis telas estavam lincadas entre elas pelo
tema e pela textura. Cada uma era um rosto pintado sobre uma grande
cabeça de cebola. Como um pentimento, cada camada de tela tinha uma
imagem, que, somadas e justapostas, davam o rosto final, ou então, a
máscara de cada personagem retratado. Percebi mais: que Lys tinha um
trabalho consistente, à altura dos artistas do Museu Lasar Segall e
da Pinacoteca. Baixei a última saia roxa e voltei para o quarto. Lys
despertou quando eu vestia as calças e afivelava o cinto.
– Então, não foi
sonho. Você existe mesmo? – perguntou Lys.
– Em carne e suor,
respondi.
– Venha aqui me
dar um beijo – disse ela, abrindo os braços.
– Não vai se
atrasar e perder o avião? Perguntei eu, entre burocrático e
irônico.
– Sei, você tá
chateado...
– Chateado não é
bem o termo.
– Sei como se
sente.
– Sabe? Como pode
saber? – devolvi o clichê.
– Faço uma vaga
ideia, melhor assim? Mas sei como eu me sinto.
– Não é igual.
– Pode não ser.
Mas eu não agiria diferente, se fosse agora. Não deixaria de
conhecer você, ainda que soubesse que sofreria com a minha partida e
a sua falta.
– Não importa,
disse eu, prometi a mim mesmo não tocar nesse assunto.
– Importa, sim –
disse Lys, num tom acima. Depois, não foi a mim que prometeu.
– Costumo cumprir
minhas promessas.
– Ao pé da letra,
então: se não vai tocar no assunto, pode, ao menos, ouvir, ver,
sentir? – perguntou Lys, conclusiva.
– Continue.
– O que posso
dizer, disse ela, é que você foi o escolhido. E, ao ser escolhido,
avisado. Não pode reclamar, você aceitou os termos. Ainda lembro
cada palavra, ou não é escritor de palavra?
– Continue.
– Por favor,
Ulisses, não aumente a culpa, minha e sua. Queria saber como alguém
pode viajar sem partir corações. Pensa que, para mim, é fácil?
– Pois eu me sinto
inseto de um dia.
– O quê?
– Inseto de um
dia, Lys, aqueles que vivem vinte e quatro horas. Mas, se prefere
outra ordem animal: homem de um dia.
– Dramático,
aposto que pensa que eu sou assim um tipo de afídeo.
– ?
– Afídeo,
Ulisses. Só para ficar no ramo dos insetos, ou dos homens. São
pulgões femininos, que já nascem grávidos. E que só acasalam com
os machos quando precisam deles. É disso que está falando?
– Belos espécimes
somos, então – disse eu.
– Sinceridade,
Ulisses, nenhum homem, até agora, me mereceu. E sobre você, ainda
que ideal até aqui, ainda tenho dúvidas. De qualquer modo, mesmo
sem te conhecer melhor, preferi que fosse você a um estranho lá
fora.
– Obrigado,
obrigado – repeti, com certa reverência.
– O que você
queria: chegar a Hamburgo e, tanto tempo carente, deixar que um
alemão qualquer ejacule Hegel, Nietzsche ou Goethe na minha cara?
– Não sei.
– Não se sinta
usado.
– O problema não
é ser usado, é não ser mais usado. Reconhecer que encontrei as
águas da rainha e ter de admitir a interrupção.
– Águas da
rainha, bela metáfora.
– Por que tem que
ser tudo ao contrário?
– Tudo ao
contrário, digo eu, disse Lys. Porque quando, no mundo dos homens,
encontro alguém com afinidade eletiva, esse alguém aceita fatalismo
barato.
– Quem se queixa
agora? Se também eu ao contrário para você?
– Você entendeu,
Ulisses. Por que não reage e faz jus ao nome?
– O que eu quero
dizer é que a lei dos contrários já começa aí, pelo nome. Sou
Ulisses ao contrário, um cara extremamente parado, não venturoso.
Detesto fazer mudanças sérias, enfim, me mexer.
– Por esse ângulo,
eu também sou uma Penélope ao contrário: em vez de ficar imóvel,
tecendo a tal mortalha de Laertis, prefiro antes ser fiel a mim
mesma, para, depois, ser fiel à paixão. Prefiro, sim, partir,
viajar, conquistar. E, ao voltar, ver o que acontece.
– Uma odisseia ao
inverso.
– Como pode? Sem
sair do apartamento, sem viver, que tipo de escritor?
– Você respira,
vive, mas ainda não é escritor – disse eu.
– Mas, seria mais
fácil.
Disse Lys, deixando
cair o lençol e revelando os seios.
– Não é a
garantia de que preciso, disse eu, olhando os dois olhos gordos,
saltados do corpo, com dois mamilos no seu centro.
– Viver, Ulisses.
Há mais cheiros do que palavras.
– Para mim, isso
ainda não é o bastante.
– Há mais cheiros
do que dores – continuou ela.
– Ulisses ao
contrário. Não posso ir contra o meu DNA.
Eu me aproximei
então daqueles grandes olhos, beijando túmidas framboesas. O
bastante para a faísca e a gente se amar de novo e de novo outra
vez. O corpo aprendia que o amor é repetitivo. Desfazíamo-nos em
água e, línguas vivas, sugavam um do outro, toda e qualquer gota.
Trocávamos águas, explodimos um dentro do outro. Então achamos que
isso era amor.
– Por que você
pinta só homens e cebolas?
Perguntei, quase
sussurrando ao seu lado no travesseiro.
– Por quê? Não
tem por que numa obra de arte.
– E se tiver?
– Nesse caso, a
metáfora é bem essa: homens e cebolas. Eles têm diversas camadas,
nos fazem chorar sempre.
– Não poderia ter
uma versão feminina, mulheres e cebolas?
– Não é isso o
que acontece, disse ela. Com os lábios firmes.
– Há
controvérsias.
– Não é emoção
no varejo. Outro tipo de lágrima a que me refiro, disse ela.
– Que tipo?
– Lágrimas
sociais, disse ela. De direitos iguais. É só por isso que a mulher
chora mais. O homem antes de explorar o homem, explora a mulher.
– Meu Marx de
saias – disse eu, enlaçando seu corpo.
– E você acha
graça?
– Estou rindo?
– Brincando,
então. Mas a última revolução não será dos operários, será a
da mulher, o ser mais explorado e humilhado de todas as culturas.
– Brincando? A
submissão da mulher, alguém já o disse, de tão histórica, se
pretende natural. Concordo com você: é preciso pôr um fim nisso
tudo, disse eu, com a voz forte, soprando seus cabelos.
– Bom saber que
pensa assim, Ulisses. Mas está chegando a hora. Preciso tomar um
banho, pôr uma roupa, pegar as malas. Ir para o aeroporto.
Lys levantou e ficou
parada por instantes ao lado da cama. Seu corpo era sedutoramente
traçado pela luz que se filtrava pela cortina da janela. E, ao mesmo
tempo, também detalhado, pela sombra no seu dorso nu, tonificando de
cinza o volume duro das nádegas, coxas e pernas. Depois, quando ela
tornou a sentar ao meu lado e tão perto de mim, tive a ideia de
fechar um olho e, através do seu seio e, na curva perfeita, vedar
toda a luz a partir do sol da janela, forjando outro eclipse.
Descubro uma razão
para estar apaixonado a cada instante. Comecei a amar seus defeitos.
O corte no mindinho, alterando o eixo do dedo e perspectiva da unha.
Sua orelha esquerda, levemente desprendida, sobressaindo curiosa
entre os cabelos. A cicatriz de menina, a um palmo acima do joelho
direito, que parecia sorrir quando Lys dobrava a perna ou retesava a
coxa. Pequenos defeitos de fato, frente à grande cicatriz, de
mulher, outro sorriso.
Mas era dos defeitos
que meu olho não arredava a retina. Não para me habituar a eles,
mas no sentido de tornar Lys menos etérea e mais humana. Em outras
palavras, seus defeitos buscavam ser a parte de maior interesse:
quando ela quisesse se dissipar, fugidia, na memória, seus defeitos
iriam trazê-la de volta. Tudo ao contrário.
Enquanto ela
preparava o banho e se vestia, aproveitei o lavabo da sala para fazer
um asseio rápido. Meu corpo grudava nas partes íntimas, no entanto,
em nenhum momento, pensei em usar o banheiro principal e atrapalhar
os últimos preparativos de Lys. Banho de gato, usei o perfume e
desodorante disponíveis no armário, ajeitei o cabelo. Estava pronto
para levar Lys para o aeroporto.
Retrato. Um e
setenta e seis, porte atlético, 94 de busto, pele de bronze. Ombros
altos e largos de quem pratica natação, esguia. Nenhum grama a mais
no abdômen ou onde quer que fosse. O osso ilíaco dava voltas à
imaginação, o cóccix, seguindo a marca branca deixada pelo
biquíni, acentuava a queda. Do outro lado da maçã, o delta branco
envolvia o delta pubiano e o corte. Duas pernas, firmes e longas,
mantinham a arquitetura. E o jardim suspenso.
Havia uma coisa
próxima à ansiedade. Olho para a falsa figueira no vaso oval, no
canto da sala e para a varanda repleta de rendas portuguesas. Também
elas não resistiriam por mais de uma semana à ausência de Lys.
Estávamos todos condenados. Precisávamos das suas águas, as
plantas e eu.
– Não se
preocupe, disse ela, adivinhando parte dos meus pensamentos. Tia
Siena virá aqui regularmente para ver as contas e conversar com as
plantas.
Ajudei com as malas,
parei um táxi e chegamos a Guarulhos em poucos minutos. Avião
atrasado, tivemos tempo de tomar um cappuccino, conversar um pouco
mais e, sempre que podíamos, namorar com os olhos.
– Posso perguntar
uma coisa? – disse Lys.
– Claro... que não
– respondi.
Risos.
– Se, na Índia,
você fosse um xá, o que faria?
– Eu?
– Vou dar um
exemplo: se o Sha-Jahan construiu o Taj Mahal para homenagear sua
mulher, o que você faria?
– Para homenagear
você?
Ela sorriu.
– Pense bem: olhe
que o Taj Mahal, disse Lys, ainda é insuperável, na arquitetura e
no símbolo. O que você faria?
– Se é assim,
disse eu, projetaria outro Taj Mahal. Igual em tudo ao primeiro e bem
à sua frente. Mas com uma diferença.
– Qual?
– Ao invés de
mármore branco, usaria o mármore preto. Mais raro e caro.
– Pensa que se deu
bem?
– Penso.
– Não esqueça de
que esta era a ideia original do arquiteto desse mausoléu.
– Então?
– Então o quê?
– Foi a distância
quase impossível entre a ideia e a realização? – respondi em tom
blasé.
– Mais ou menos
isso, disse Lys. É que o imperador, depois de pagar uma enorme
fortuna ao arquiteto, cortou suas mãos para jamais realizar outra
obra igual.
– Quer dizer:
fiquei, então, sem as duas mãos?
– É o que parece,
disse ela, deixando marcas de batom na xícara de café.
– Então, sem
mãos, não posso escrever um livro para ela?
– Outra chance,
disse ela. Quer uma história?
– A sua?
– Uma sobre uma
mulher que, desde que viu um arco-íris de 360º quando menina, sabia
que teria uma missão a cumprir.
– Uma missão?
– Que, ano após
ano, em sua lenta formação, quase às escuras, lenta crisálida,
talvez, teria de preparar as asas para uma longa travessia.
– Qual?
– Quem sabe?
Atravessar águas, como a monarca e libertar, em cada país, a
mulher?
– E como ela faria
isso?
– Ora, com polen
nas patas.
Risos.
Não faltaram dicas.
Lys, afinal, estava se referindo a si mesma o tempo todo. Tinha sido
ela e ninguém mais quem presenciou o fenômeno do arco-íris de 360º
no céu de sua cidade. Era ela a monarca abrindo as asas e espalhando
o polen da consciência da mulher, a partir da velha Europa para o
Novo Mundo. Não atentei para as entrelinhas e, por isso, hoje, não
posso fazer mais nada senão tentar escrever sua história. A
incrível odisseia de uma mulher em sua luta para se libertar,
libertando outras mulheres.
– Relembrando
Rembrandt, Rimbaud e tudo o que a gente falou.
– Aham...
– Para você, a
ação é mesmo uma forma de estragar a força?
– Esse assunto de
novo?
– Responda.
– Sim, acho que
sim.
– Acredita mesmo
nisso?
– Em certo
sentido, sim.
– Em certo
sentido. Isto é resposta?
– Aquela história:
Deus é a resposta, disse eu. Mas qual é a pergunta?
– Che Guevara
fazendo guerrilha na Bolívia, estragou a força? Lynne Cox, a mulher
que atravessou a nado o Estreito de Bering, de um país a outro, em
duas horas e seis minutos, vencendo a hipotermia, estragou a sua
força? Estragou?
– Se Immanuel
Kant, retruquei eu, suasse fazendo exercícios, tirando um tempo de
escrever, não estaria estragando a sua força?
– É diferente.
– Se uma
bailarina, Lys, como você, um dia, tentou passar anos e anos
deformando seu corpo apenas para conseguir realizar um pequeno
movimento, não estaria estragando a sua força?
– Vou ter de levar
essa dúvida para Hamburgo comigo.
Hora do embarque.
Abraçamo-nos em silêncio, eu de olhos fechados, ela, não.
Demoradamente.
– Seja o Ulisses
do romance, disse ela.
– Por Ática,
disse eu, erguendo o punho.
O que eu não falei:
– De hoje em diante, serei sua Penélope, disse Lys. Não é ela
que fica fiel toda a vida? – Bem, na nossa história, Ulisses é
quem fica esperando Penélope voltar, disse eu. Toda a vida. – Sua
Penélope Lys volta em um ano: um ano, espere e verá – disse ela.
Não falei. Eles não
podem nunca saber que Lys é agora Penélope. Penélope Lys. O que eu
falei: Lys tomou o avião e eu, um táxi, para casa. Levando ainda,
na valise dos lábios, a sobra do batom e o gosto do beijo.
2.
(Continua por mais 200 páginas)